quinta-feira, 30 de junho de 2011

como seria de esperar, foram-nos ao bolso…

Quando ouço falar de Cultura

saco do último "Ao pé da letra" do António Guerreiro:


Diga-se, sem reservas nem ironia: seria difícil encontrar um secretário de Estado da  Cultura tão perfeitamente identificado com o mundo cultural como Francisco José Viegas. O seu currículo é o do perfeito agente cultural: o indivíduo que tudo converte à linguagem da cultura e a amplifica nas suas saborosas astúcias. Escritor, o seu mundo é o da cultura literária; editor, a sua tarefa é a cultura editorial; diretor de uma revista literária, a cultura foi no entanto o seu verdadeiro sacerdócio; comentador de futebol, ele responde às exigências profanas da cultura futebolística; homem de gostos mundanos, sejam eles a gastronomia regional, os vinhos ou os charutos, ele inscreve-os na ordem dos requintados interesses culturais. Eis alguém que faz a síntese total com que sempre sonharam os espíritos iluminados pela chama da cultura. A sua vocação de agente cultural é um percurso de santidade: é uma capacidade pacificadora que consiste não apenas em conviver com tudo, mas em fazer com que tudo conviva com tudo, sem exclusões nem conflitos. Os ofícios sacerdotais da cultura, tal como FJV sempre os exerceu, são uma esponja que apaga rugosidades e anula asperezas: constroem o consenso, exaltam o conformismo, glorificam uma arte de viver que sabe aderir, em cada momento, à superfície lisa do tempo. A cultura — sabe muito bem este mestre dela, agora secretário de Estado — rege-se pelo princípio da conformidade. Com os seus mecanismos bem afinados, a cultura nada tem de irredutível, de resistente. É uma matéria plástica, pronta a ser moldada, convertida, traficada — tarefas que os mais dotados agentes culturais exercem com zelo. O poder da cultura é mimético e extensivo. Sem reservas nem ironia: quem agora acedeu a secretário de Estado da Cultura sabe, das argúcias culturais, tudo o que há a saber.

É um texto de se tirar o chapéu. Certeiro no tom e subtil na escolha de palavras. Vou pôr de lado os muitos comentários que tenho sobre o tema. Por agora, queria apenas sublinhar a forma. É uma demonstração de como também a ironia se serve melhor fria, sem malabarismos. Não há ironia mais cáustica do que a do estilo enxuto e martelado de Kafka. Não há nada mais impiedoso. E eu diria que este texto do António Guerreiro é quase kafkiano. No modo como pede para ser tomado à letra, e como faz do sentido literal, “sem reservas nem ironia”, o meio de transporte da ironia mais amarga. For Brutus is an honourable man. Porque Francisco José Viegas é o perfeito agente cultural. No famoso discurso que Shakespeare põe na boca de Marco António, a mestria está na insistência cadenciada com que a honradez de Brutus é defendida, e o seu sentido esvaziado e revertido. No texto do António (sem querer comparar o valor literário da cada um - a sua habitual modéstia insistiria que eu o sublinhasse), o truque está não em desmentir a “perfeição”, mas em torná-la prova de acusação. E assim, sem desmanchar a cara séria, oferece-nos um muito melhor retrato dos perversos efeitos lubrificantes e anestéticos da Cultura do qualquer invectiva com muito bater de pés e espumegar da boca. Em vez de ranger estridentemente os dentes, o António deixa-nos ouvir o ranger das contradições sob o manto pacificador em que nos querem enrolar.

P.S. Fui buscar o texto (que está incompleto, julgo) aqui.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Elas guardam sanitas e fazem renda em pequenos cubículos sem janela.

Continua daqui.

4. SERVIÇOS

Elas carregam no botão da caixa e fazem quinhentos trocos miúdos. Elas metem a cavilha, dizem outro número e passam a vigésima chamada. Elas mexem panelões que lhes chegam à cinta. Elas descem doze caixotes de lixo já noite fechada. Elas fazem todas as camas e despejos de uma família alheia. Elas picam bilhetes metidas numa caixa de vidro. Elas batem à máquina palavras que não entendem. Elas arquivam por ordem alfabética duas mil fichas e vinte e cinco ofícios. Elas vão outra vez buscar a gaveta das luvas para o balcão a ver se há aquele verde. Elas aspiram do pó antes das nove doze assoalhadas, e cento e dez degraus de alcatifa. Elas entram na praça manhã cedo, já vindas do lota ajoujadas com o peixe para as bancadas. Elas acertam as bainhas de joelhos, a boca cheia de alfinetes. Elas põem trinta e duas arrastadeiras e tiram sessenta temperaturas. Elas pintam unhas de homem. Elas guardam sanitas e fazem renda em pequenos cubículos sem janela.

Maria Velho da Costa, "Revolução e Mulheres"

terça-feira, 28 de junho de 2011

«So piss off Satan and don't take me for dumber than I look»


Chegou-me por vias travessas o inquérito mais auto-complacente do momento: debitar nomes de escritores numa tarde amena de verão, coisa que eu, auto-proclamado ministro do entretenimento desta cloaca (uma espécie de Professor Griff cá do burgo, esta é para os mais batidos na história do hip-hop), não desdenharia em fazer. Contudo, o meu muito lá de casa nunca foram os livros, e os que ainda existem não passam de biombos de sala. Eu é mais bolos (parra, delícia folhada, doce da teixeira, etc.) e música (hall & oates, barry white, michel polnareff, por aí), por isso preferia não responder ao questionário. Desde logo, porque ele se assemelha a uma versão travestida das cartas-correntes da internet, ainda que disponha de um álibi literário para que os pseudo-aspirantes-assumidos-e-indubitáveis intelectuais se possam gabarolar. À semelhança das cartas-correntes, se o questionário não for repassado (um brasileirismo caro à literatura brasileira do século XIV e usado ocasionalmente por João do Rio e pelos maconheiros da zona norte do Rio de Janeiro) pode trazer sérios dissabores. Fiquem descansados, por mim ele morre já aqui. Parafraseando o senhor que se segue, «Tell them firmly: I am not paid to listen to this drivel». Por outras palavras, deixem-se de babosices e fiquem com os conselhos do William, it was really nothing:

Se mexes aí, corto-ta

Continua daqui


5. TRANSMISSÃO DE IDEOLOGIA

Coisas que elas dizem:

— Se mexes aí, corto-ta.
— Isso não são coisas de menina.
— O meu homem não quer.
— Estuda, que se tiveres um empregozinho sempre é uma ajuda.
— A mulher quer-se é em casa.
— Isto já vai do destino de cada um.
— Deus não quiz.
— Mas o senhor padre disse-me que assim não.
— Dá um beijinho à senhora que é tão boazinha para a gente.
— Você sabe que eu não sou dessas.
— Estás a dar cabo do teu futuro com uns e com outros.
— Deixa-te disso, o que é preciso é sossego e paz de espírito.
— Comprei uns jeans bestiais, pá.
— Sempre dá para uma televisão daquelas novas.
— Cada um no seu lugar.
— Julgas que ele depois casa contigo?
— Sempre há-de haver pobres e ricos.
— Se tu gostasses de mim não andavas com aquela cabra a gastar o nosso. — Põe o comer ao teu irmão que está a fazer os trabalhos.
— Sempre é homem.

Maria Velho da Costa "Revolução e Mulheres"

É mas é uma comichão no corpo todo


“O repúdio do marasmo cultural que nos rodeia pressupõe a imersão no mesmo, a ponto de o sentirmos a formigar nas pontas dos dedos, mas simultaneamente a força, gerada por essa mesma imersão, necessária para o recusarmos.” T. W. Adorno
Se calhar o melhor é ir dar um mergulho à praia a ver se sai.

B Chachada

Para começar eu tentei gostar. O título - "Deus, Pátria e Família" -  sugeria uma iconoclastia anti-nacionalista, que a bem da verdade até existe na música, e esta entrevista mostrava um jornalista entusiasmado com o que seria um texto refundador. O jornalista depois de comparar a musica com o FMI do José Mário Branco resolve a comparação da seguinte forma:  

"A provocação de Fachada é uma outra coisa. É um gesto estético integrada num contexto específico, uma provocação para agitar, o retrato de família que B Fachada, que "não canta em português", fez deste país, ano 2011. Com as pontas soltas da ambiguidade que é uma das suas imagens de marca."

Depois de tantas loas, fiz o download da coisa e dediquei vinte penosos minutos a um artista - no sentido que se usa na minha terra - que já tinha descartado há muito tempo, ainda antes dele ser gemedor de baladas. O resumo da minha experiência é que a pose e o tom continuam a não disfarçar a voz de jumento afónico e nem o mérito deste verso ""sem a pátria para cantar, sobra o mundo para viver" salva mais este bocado de inépcia musical.





Como me lembro do tipo a perorar contra a Sophia aqui fica um pedaço de literatura com dedicatória:


"Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra"

segunda-feira, 27 de junho de 2011

I Won't Work

 Como oportunamente relembra a Raquel, os Wobblies foram fundados há 106 anos. Aqui fica um excerto de um texto em inglês, escrito originalmente em italiano por Sergio Bologna, que sugere um exercício comparativo entre a tradição das lutas operárias norte-americanas e a das suas congéneres europeias :
In 1905, at the peak of the struggle, while the Soviets were coming into being in Russia, in the USA the International Workers of the World (IWW) was formed; the most radical proletarian organisation ever in the USA, the only revolutionary class organisation before the rise of the Afro-American movement. Today there is much to be said and learned from the IWW. Although many of its militants were anarchists and anarcho-syndicalists who had migrated to the US from Eastern and Western Europe, the IWW cannot merely be written off as the American equivalent of French anarcho-syndicalism.
What was there in the IWW that is so extraordinarily modern? Although it was based on an old class nucleus, the Western Federation of Miners, the merit of the IWW was that it attempted to organise the American proletariat in terms of its intrinsic characteristics. It was primarily an immigrant proletariat, and therefore a mixture of ethnic groups which could only be organised in a certain way. Secondly, it was a mobile proletariat, a fact which very much militated against identification with any particular job or skill, and which also militated against workers developing ties to individual factories (even if only to take them over).
 The IWW made the notion of the social factory a concrete reality, and it built on the extraordinary level of communication and coordination possible within the struggles of a mobile workforce. The IWW succeeded in creating an absolutely original type of agitator: not the mole digging for decades within the single factory or proletarian neighbourhood, but the type of agitator who swims within the stream of proletarian struggles, who moves from one end to the other of the enormous American continent and who rides the seismic wave of the struggle, overcoming national boundaries and sailing the oceans before organising conventions to found sister organisations. The Wobblies' concern with transportation workers and longshoremen, their constant determination to strike at capital as an international market, their intuitive understanding of the mobile proletariat - employed today, unemployed tomorrow - as a virus of social insubordination, as the agent of the "social wildcat": all these things make the IWW a class organisation which anticipated present-day forms of struggle, and was completely independent of the tradition of the Second and the Third Internationals. The IWW is the direct link from Marx's First International to the post-communist era.

AAVV


Um sinal óbvio de que a época tola chegou é o facto de já ter sido desafiado por três vezes - e sempre por pessoal do 5 Dias - para responder a esta espécie de inquérito aos hábitos literários. O Miguel e outros unipoppers, aliás, também não escaparam ao desafio.

1. Existe um livro que lerias e relerias várias vezes?
Assim de repente, nem por isso. Quer dizer, por vontade própria e "várias vezes" não. Mas há livros em que já peguei mais do que uma vez, geralmente com alguns anos pelo meio, por puro prazer, curiosidade e interesse. Sinceramente, e não sei se pela minha tenra idade (pausa para as gargalhadas), não estou bem a ver o interesse de ler um livro mais do que três vezes numa vida inteira. A não ser, naturalmente, para quem tem problemas de memória.
 É provável que os únicos livros que li e releria várias vezes sejam todos de BD. Li várias vezes o volume Toda a Mafalda, mas já não lhe pego há uns bons anos. Como o Youri, regresso várias vezes ao Astérix, mas cada vez menos. Descobri tardiamente o Corto Maltese, o que talvez explique a razão pela qual continue a encontrar-lhe bastante interesse. Mas sinceramente, e quanto mais penso nisso, não li nenhum destes livros ou colecções mais do que três vezes.
Tenho voltado várias vezes a Operários e capital, de Mário Tronti. Mas é um livro que se "estuda" mais do que se "lê". Tal como a Sociedade do Espectáculo, de Guy Debord.
Tudo isto  para regressar à formulação inicial. Assim de repente, nem por isso.

2. Existe algum livro que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste e nunca conseguiste ler até ao fim?
Sim, claro. O Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, é um óbvio. Não percebo nada daquilo. Suponho que isso  faça de mim um esquizofrénico iletrado, mas é o que há. 
A Montanha mágica, de Thomas Mann, é outro que tal. Costumo ficar pela página 123. É o momento em que o autor partilha com o leitor a ementa do almoço e eu perco automaticamente a paciência. Ao fim e ao cabo, o que me interessa o que comia Hans Castorp no sanatório de Davos? Para ilustrar o ponto, uma citação: 
O resto do Domingo não ofereceu nada de excepcional, a não ser as refeições que, embora não pudessem ser mais fartas do que de costume, se distinguiam pelo menos pelo requinte dos pratos. No menu do almoço figurava um chaud-froid de galinhas, guarnecido de caranguejos e meias cerejas; os gelados vieram acompanhados de bolos, em cestinhos feitos de fio de açúcar. E por fim, fatias de ananás fresco. À noite, depois de ter tomado a sua cerveja, Hans Castorp sentiu os membros ainda mais trémulos e pesados do que nos dias anteriores e às nove horas disse «Boa noite» ao primo, cobriu-se com o acolchoado de penas até ao queixo e adormeceu, como fulminado.

Cagões? You ain't seen nothin' yet!



Como isto por estas bandas está mais sossegado do que o Belmiro de Azevedo quando se lembra de ir consultar o saldo bancário, resolvi aceitar o convite do Renato e tentar responder ao tal questionário, apesar de algumas reticências. Até porque "curioso com o Miguel Cardoso" soa bem. Dificilmente será grande remédio para a pasmaceira, mas pode ser assim uma espécie de óleo de fígado de bacalhau. Mete passarinhos, ministros, vómito e a determinada altura aparece um ralador com intuitos maliciosos. Fora isso é chato. Um inocente exercício de caganice, como todas estas coisas. E também falo de alguns livros. É ir por aí abaixo e seguir as tabuletas.



1 – Existe um livro que lerias e relerias várias vezes?
Já li e reli muita coisa muitas vezes, umas quantas por obrigação mas quase sempre com gosto. Sobretudo os modernistas. Por uma qualquer deformação de personalidade que a formação académica acentuou, não me apego muito a enredos e personagens: vou lá revisitar verbos, adjectivos e preposições, espreitar as engrenagens, e para voltar a passar devagarinho, palavra a palavra, por aquela descrição longuíssima de como o cuspo se adensa quando temos medo. O essencial é ir acampando em vários sítios e inventar engenhos para apanhar outros ângulos da paisagem. Mas, acima de tudo, ser terrorista e não respeitar a habitat natural das palavras. Pode-se observá-las de longe e fazer festinhas durante algum tempo, mas depois é construir barragens, espantá-las com estalidos e urros, arrancá-las à bruta, esquartejá-las e levá-las a dar uma volta até ao livro ao lado, enquanto se vai deixando para trás um trilho da porcaria que trouxemos de outras paragens.

Claro que o mais certo é daqui a uns anos fazê-lo sem dar por isso.

sábado, 25 de junho de 2011

Desculpem a maçada, mas uma alusão a Cassavetes não podia ficar sem Fugazi

Crush my calm you cassavetes
I was sitting tight so quiet quiet
In the dark till the lights came up my heart
Beating like a riot riot
Hollywood are you sitting on a sign
For someone to come on bust a genre
You poor city of shame
Ask me what you're needing
I'll sell you his name
cos he was the one to send it with truth
That's something from someone

Do fosco e do estremecido: exercícios de aproximação ao povo

Parte III do folhetim em farrapos "À farinha não se faz festinhas, que é uma porcaria. Ao povo também não" (Parte I aqui e Parte II aqui)


No que toca à aproximação ao povo, que foi onde ficámos, não há um consenso entre os estudiosos. Ainda assim, a maioria dos manuais disponíveis aconselha o uso de uma faca e um espelho. Idealmente, uma coisa em cada mão, para maior liberdade de movimentos.

Aqui, como adivinharão os sabidos leitores, começam logo os problemas.

É preciso muita ginástica.

Haverá mil maneiras de esfolar um gato, mas esfolá-lo em movimento é dos diabos. Ainda por cima os gatos são manhosos. Pode não parecer, mas isto tem tudo a ver com o povo.

É muito pouco provável, mas ponhamos a hipótese de até aqui não ter sido suficientemente claro. A este propósito, convém lembrar que  o objectivo da ciência não é o de tornar o obscuro claro, mas o de perceber as razões da obscuridade. A obscuridade é. Nós somos. Portanto, vamos lá espreitar. Uma coisa é certa, é preciso passar algum tempo em sítios muito escuros, e fazer tantas festinhas ao opaco que a pele na ponta dos dedos começa a descamar. Há muita gente que prefere usar luvas, mas pessoalmente acho que perde a piada. E é pela piada que cá estamos.

O meu conselho: vão habituando os olhos. Ao escuro, por um lado, e à ciência, por outro.

Do que se trata, no fundo (e isto talvez já tenha dado para perceber), é de anatomia. Diga-se que a anatomia, aparentemente a arte da transparência (de uma certa transparência), da exactidão (de uma certa exactidão), e da quietude (uma certa quietude), seria difícil sem um certo amor – inconfessado, claro - pelo fosco e pelo estremecido. Sem o estremecido não se percebia nada, sem o fosco – que pode até ser apenas aquela mancha minúscula num traço aparentemente limpíssimo – faz doer muito os olhos. É aliás fácil perceber isto se pensarem que uma visão demasiado clara, como um aparelho de raio-X demasiado poderoso, é das coisas mais inúteis que se pode ter, porque não se vê nada. O fosco é onde pára a transparência. Do que se trata, no fundo, é do fosco. E, claro, da sua relação com a transparência. Só esclarecendo esta questão é que podemos abordar o povo com o rigor que merece.

Deixemos portanto de parvoejar e vamos ao que interessa.

não sou muito dado a obituários, mas para que o falcão não seja só recordado como colombo, aqui vai...

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Isto está entregue à bicharada

Isto é, a mim. E "isto", já agora, é o blogue. Já viram ali, na coluna, da direita, um pouco abaixo dos nomes dos unipoppers, como "Poesia" se destaca nitidamente de todas as outras coisas, todas elas mais reais e mais sérias e mais barbudas? A democracia, por exemplo. Os transportes públicos, que é das coisas mais reais que existe, logo a seguir a uma forte dor de dentes. Como dizia um poeta qualquer, "assim não vamos lá". E depois acrescentava, como seria de esperar: La la la la la. 


P.S. Não ponho isto na etiqueta "Poesia", porque também já era fazer batota.


Nós: os que com aspirinas esfareladas

Antes de regressar a coisas sérias, uma antevisão de hoje à noite. Ou seja, um dos poemas do meu próximo livro: 


Nós: os que com aspirinas esfareladas
nos bolsos, umas quantas gravações
piratas de urros de amores antigos
em trampolins, com novelos de atrito
em torno de cantos suaves de gravilha
e eco e pedaços e lixa e fita-cola . Nós
dos papéis dispersos e das canções
interrompidas, do cansaço, das mãos
ao alto, das fotocópias encardidas,
das bocas feridas por palavras de línguas
impuras e frases tardias, tão suaves,
caducas. Dos inventários de usos vulgares,
futuros, escorregadios, aguçados por delírios
de extensos quintais muito misturados,
com arames e bichos, algum sentido prático
no que toca a pôr um pé em frente ao outro
e necessidades dispensáveis na presente
conjuntura, e canções desnecessárias e claro
fiéis aos poucos a trajectórias obscuras

Elas não dormem a pensar em pequenas cortinas com folhos

 Continua daqui
6. PRODUÇÃO DE DESEJO

Elas olham para o espelho muito tempo. Elas choram. Elas suspiram por um rapaz aloirado, por duas travessas para o cabelo cravejadas de pedrinhas, um anel com pérola. Elam limpam com algodão húmido as dobras da vagina da menina pensando, coitadinha. Elas escondem os panos sujos de sangue carregadas de uma grande tristeza sem razão. Elas sonham três noites a fio com um homem que só viram de relance à porta do café. Elas trazem no saco das compras uma pequena caixa de plástico que serve para pintar a borda dos olhos de azul. Elas inventam histórias de comadres como quem aventura. Elas compram às escondidas cadernos de romances em fotografias. Elas namoram muito. Elas namoram pouco. Elas não dormem a pensar em pequenas cortinas com folhos. Elas arrancam os primeiros cabelos brancos com uma pinça comprada na drogaria. Elas gritam a despropósito e agarram-se aos filhos acabados de sovar. Elas andam na vida sem a mãe saber, por mais três vestidos e um par de botas. Elas pagam a letra da moto ao que lhes bate. Elas não falam dessas coisas. Elas chamam de noite nomes que não vêm. Elas ficam absortas com a mola da roupa entre os dentes a olhar o gato sentado no telhado entre as sardinheiras. Elas queriam outra coisa.

Maria Velho da Costa, "Revolução e Mulheres" 

Indignações




Programa:

The Rise of the Indignant: Spain, Greece, Europe


Apresentação por Costas Douzinas

Costas Lapavitsas (SOAS)
Carlos Frade (Salford University)
Illan Rua Wall (Oxford Brookes)
Stathis Kouvelakis (King’s College London)
Alex Colas (Birkbeck)
Costas Douzinas (Birkbeck)

Voo rasante: hoje à noite

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões

7. REVOLUÇÃO

Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Eles foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas ouviram faltar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro urna cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.
Maria Velho da Costa, "Revolução e mulheres"

Continua aqui

Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes


  
Já aqui tenho postado uns bocados de Cravo, da Maria Velho da Costa. E continuarei a fazê-lo, porque esta colectânea, datada de 1976, inclui alguns dos melhores textos escritos quando o 25 de Abril ainda estava quentinho. O melhor de entre todos estes talvez seja o "Revolução e Mulheres", de Dezembro de 75. É mais que conhecido, mas como é coisa que devemos ler aí uma vez por ano vale a pena pôr de novo a circular. Está dividido em sete partes, e vou postá-las aos poucos, uma de cada vez, e pela ordem inversa (make of that what you will):

1. Reconstituição da Força de Trabalho
2. Reprodução da Força de Trabalho.
3. Produção.
4. Serviços.
5. Transmissão de ideologia 
6. Produção de desejo
7. Revolução.

O que interessa vem num post já a seguir, e nos outros que se seguem.

Arte, Política, Mercadoria



Em meados da primeira década do milénio, os muros de Londres começam a ser preenchidos por estranhos desenhos. Apontando armas às mais diversas excreções do sistema económica capitalista, do controlo social realizado por bófias e câmaras da videovigilância, à relação directa entre fome, miséria e o poder económico de empresas multinacionais, o seu autor nunca chegou a revelar a sua identidade, utilizando a simples designação de Banksy. Mais tarde, o seu nome será notabilizado pelas suas intervenções em museus, onde deposita os seus quadros entre as peças das maiores figuras da história de arte mundial, ou no muro que divide os territórios palestinianos, em denúncia da ocupação zionista. Um dia, o artista de rua recebe um mail. Neste, um jovem pede-lhe que deixe de pintar no seu bairro, pois a sua arte tende a atrair a presença de jovens criadores, oriundos de classes privilegiadas, e com estes, o aumento das rendas.

Partindo do filme «Banksy-Exit Through the Gift Shop», o RDA69 propõe debater o lugar da arte e da cultura na sociedade contemporânea. Estará a arte de rua, ou qualquer outra forma de crítica, condenada à forma de mercadoria, limitando-se a alimentar museus e livrarias? Ou será possível, mesmo nas piores condições, minar a coisa por dentro, subvertendo os usos dos objectos e virando-os contra o próprio criador.

17.00. filme
19.00. conversa com Miguel Castro Caldas (escritor), Gonçalo Pena (artista plástico) e João Cachopo (investigador)
20.30. janta

Que fazer?

O Nuno Teles, o Luís Bernardo e a Mariana Avelãs expõem aqui, de uma forma bastante clara, uma possível resposta política à tentativa de imposição do pagamento da dívida. Uma questão, no entanto, se levanta. O que fazer entretanto, tendo em conta que a possibilidade do actual governo vir a aceitar uma auditoria cidadã à dívida parece ser, no mínimo, remota?

Se num restaurante me apresentarem uma conta de 50 euros por um hambúrguer, não me limitarei a pedir a factura detalhada, mas igualmente a não pagar a conta enquanto tal não me for disponibilizada. É neste ponto que o texto deveria ser mais claro. Se a auditoria representa, por si só, um sinal de desconfiança com a dívida a ser cobrada, será então razoável pagar aquilo que, segundo os autores, compreende montantes legítimos, ilegítimos, ilegais, odiosos e insustentáveis?

Deste ponto de vista, não só não consigo ver quaisquer incompatibilidades entre a defesa de uma auditoria à dívida e o não pagamento da mesma, como considero que uma não tem qualquer sentido sem a outra. Pois, se por um lado, a defesa do não pagamento necessita de ser fundamentada por dados claros e precisos que, a conhecerem-se, contribuirão certamente para colocar ainda mais a nu o funcionamento do sistema capitalista, por outro, a reivindicação de uma auditoria, por si só, parece assinalar tanto uma debilidade, sob a bandeira do politicamente correcto e exequível, como uma enorme contradição: uma vez que, em termos concretos, a atitude perante a ilegitimidade acaba por ser exactamente idêntica à postura de crédulo.

Sell! Sell! Buy! Buy!

Revisão da matéria dada: a sabedoria dos mercados e como começou a crise. Pela dupla de cómicos ingleses Bird and Furtune:





quarta-feira, 22 de junho de 2011

Abriu a época de caça. Feliz solstício de verão!

A coragem é o melhor afrodisíaco


Ela trincou o rissol
e não olhou para o interior.


Fiquei a gostar dela por causa disso.


Daniel Maia-Pinto Rodrigues

Uma tragédia muito moderna

"Tanya googled herself. Still nothing."

Tim Key

O paradoxo


  Ressalto apenas dois pontos: a felicidade do povo é possível através da cooperação entre os eleitos municipais socialistas e o capital monopolista da distribuição; a ocupação do espaço público fez-se em torno de um homem que simboliza a internacionalização de um modo de estar português, a síntese possível entre os valores do Interior e o cosmopolitismo.O fim de semana da capital, simétrico ao das cidades espanholas, mostra que a direita, depois de conquistar o poder, encheu as ruas e com a ajuda dos santos populares há-de resolver o paradoxo entre a perda de independência nacional e a persistência do patriotismo.
Nós também te seguimos Luís.

Deve ser uma coisa extremamente séria


E virando-se para ele:
Mas afinal o que é que tu fazes exactamente? Ainda não percebi.
Ocupo-me da reificação, respondeu Gilles.
É uma coisa importante, acrescentei eu.
Sim, disse ele.
Estou a ver, observou Charlotte admirativamente. Deve ser uma coisa extremamente séria, com livros grossos e muitos papéis em cima de uma grande mesa.
Não, respondeu Gilles, passeio, acima de tudo, passeio.
Michèle Bernstein, Tous les Chevaux du Roi, Buchet-Chastel, 1960

terça-feira, 21 de junho de 2011

Aos que não sabem viver


Já aqui falei de tropeções e da falta de jeito para o mundo. A falta de jeito é como a História: nós podemos esquecer-nos dela, mas ela não se esquece de nós. E como o mundo é, regra geral (apesar do que disse o Marx), sólido – e ainda por cima esquinado e ossudo -, não há chumaço que nos valha, ou substância inebriante suficientemente poderosa para lhe arrendondar devidamente os ângulos. Assim, a minha vida é como a História Universal: um relato escabroso de desacertos e erros de cálculo, engasgos, atropelos, mortandades e muitos vidros estilhaçados. E, no final, um catálogo tão variado de nódoas negras que dava para todos os taxistas agora parados no Aeroporto de Lisboa fazerem testes Rorschach. Já dizia o outro: Les rages, les débauches, la folie, dont je sais tous les élans et les désastres.  E depois há aqueles a quem a coisa corre mesmo mal.  

Um dos melhores tratados sobre o assunto (há, claro, o Le Rire do Bergson) é de Alexandre O'Neill. Ei-lo:

Saber viver é vender a alma ao diabo

        Gosto dos que não sabem viver,
        dos que se esquecem de comer a sopa
((Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s... b... de marchand de nuages?»)
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.

Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Sai uma bruta dose de Ingenuidade para a mesa do canto

 (Dois breves excertos de um texto longo sobre Jacques Rancière, com o título provisório "A improvisação dos incompetentes", que em breve verá a luz do dia)


A improvisação dos incompetentes

a sociedade tolera mal que se junte à liberdade que ela dá uma liberdade que se toma”
R. Barthes

 
Um dos truques da filosofia, porventura o truque da filosofia, é precisamente o de fabricar ingenuidades. Quando elas não existem, é preciso inventá-las, para que se passe então à verdadeira vocação filosófica: diagnosticar os ingénuos e desmascarar as suas ilusões. Neste processo, cura e doença andam de mãos dadas, pois sem a ingenuidade o saber arrisca-se ao pecado capital da redundância: precisa de ingénuos como a boca do pão, o professor de alunos ou o padre de prevaricadores. Seria no entanto um equívoco confinar esta questão ao saber académico e às suas formas de legitimação: ela atravessa e estria todo o nosso campo social e político. Desfiemos um pouco esta ideia: o ingénuo é o inocente, o idealista, o insensato; a ele se opõe o esclarecido, o realista, o razoável. Assim se reparte um mundo. Gostaria de sugerir que esta divisão, muitas vezes subtil, é mais importante – ou seja, mais eficaz – do que os grandes fossos civilizacionais que estamos habituados a reconhecer: entre a razão e a loucura, a verdade e o erro, ou o bem e o mal. E é mais eficaz porque o ingénuo – que tem muitos graus, do pobre tolo, passando pelo jovem impetuoso, até ao fanático irredutível – é apenas ainda ingénuo. Ou seja, não é cego, apenas não está bem a ver. Basta portanto que ouça os que já sabem, que aceite fazer o caminho que os levou até lá, que se disponha a ver aquilo que os outros já viram e que, está bem de ver, está lá para ser visto. Esta lógica aplica-se não só a indivíduos, mas a colectivos: as democracias jovens são ingénuas, como o eram – ou são - os povos ditos “primitivos”. A ingenuidade é assim, por outras palavras, uma forma de atraso. Daí o leve sorriso, a piscadela de olho cúmplice, paternalista, e os ares de simpatia que parecem recobrir o termo, mesmo quando aplicado aos elementos tidos como perigosos, como o sejam os militantes cujas causas e ideiais, dizem-nos os esclarecidos, os impedem de ver o mundo tal como ele é. São por isso mesmo moeda corrente entre os fazedores de opinião histórias instrutivas acerca de como se deixaram para trás as doces, mas nem por isso menos nefastas, ilusões de juventude.


Onde se fala de futebol e de Poe, a propósito de uma teoria científica do sujeito


No nosso futebol (meu poiso durante 28 anos, através do dirigismo no C.F. “Os Belenenses”) há dois campos bem estremados em liça: o dos que se fundamentam na sua vida de ex-profissionais e o dos que, teoricamente tão-só, falam de futebol, até à exaustão – escasseando, tanto num lado como noutro, a informação e a cultura. Trata-se de uma lacuna tão evidente... que ninguém vê! Ocorre-me o conto de Poe, “The Purloined Letter”.
A polícia parisiense procura, em vão, na casa de um suspeito, uma carta politicamente comprometedora. A polícia investiga os pontos mais escondidos e... nada! Em desespero de causa, o chefe da polícia solicitou a colaboração de Dupin, precursor de todos os detectives da literatura policial, que rapidamente encontrou a carta procurada. De facto, a carta não se encontrava em nenhum esconderijo de difícil acesso, mas à vista de toda a gente. E nisto consistia a astúcia: o seu ocultamento era a sua fácil visibilidade. Acontece o mesmo com o nosso futebol. É tão evidente a incultura e a desinformação, que o fragilizam, que se torna difícil descobri-las e entendê-las.
Daí que eu ouse propor a criação de um departamento de inteligência competitiva (DIC), nos clubes de futebol profissional, na selecção nacional de futebol, liderado por um doutor em Desporto e composto ainda por um filósofo, um psicólogo, um fisiologista (ou um médico) e um treinador de futebol. Com que objectivos? A criação de uma nova racionalidade, onde ciência e filosofia sejam complementares e portanto onde conhecer seja principalmente relacionar, contextualizar, organizar. E que ciência? Indubitavelmente, uma ciência hermenêutico-humana, dado que o futebol é menos uma actividade física do que uma actividade humana. Uma teoria científica do desporto é sempre uma teoria científica do sujeito.
Manuel Sérgio, A inteligência competitiva e o espectáculo desportivo

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Raios partam Lenine



Poucas discussões podem ser mais entediantes do que aquela em que dois istas discutem qual dos dois é mais verdadeiramente ista. São discussões certamente muito passionais mas que são chatas até mais não. Sei-o bem porque já perdi algumas noites desta vidinha a tentar provar, sentado nos bancos de pedra plantados à frente do Califa, que o meu benfiquismo era mais ardente do que o de um dado interlocutor. E posso garantir que ainda assim no dia seguinte o Porto se manteve no primeiro lugar do campeonato. Mas eis senão quando chega à nossa já farta mesa uma discussão que tem tudo para ser ainda mais absurda do que aquelas. É o que sucede quando um ista acusa alguém que não é do mesmo ismo de não ser do mesmo ismo (sim, isto mesmo). Neste post a Raquel Varela diz que eu e o seu colega de blogue Carlos Vidal destratamos Lenine. Ora sucede que eu estou a mais nesta história. Podem a Raquel e Carlos Vidal discutir entre si, com inteligência, fulgor e paciência, quem trata melhor e quem destrata pior o pobre ou o rico do Lenine. Será um debate que acompanharei, na medida das minhas possibilidades, mas um debate que não me faz descer da bancada lateral ao relvado. Posto isto (e tentando não mandar por água baixo tudo o que anteriormente escrevi), devo dizer que já me faz alguma comichão não conseguir explicar à Raquel Varela a minha posição em relação ao tal do Lenine. A Raquel diz que eu acuso “Lenine de ter semeado estalinismo com a concepção de Partido Revolucionário”, mas não encontro em nada do que alguma vez tenha escrito o que quer que seja que induza tal leitura. Essa tese, que em boa medida é a de, entre outros, historiadores como François Furet, incorre naquilo a que poderíamos chamar a teoria da escalada; um gajo começa por dizer que ganha pouco, no dia seguinte faz uma greve, no dia seguinte faz ainda mais um dia de greve, na semana seguinte vai pregar a greve para outras freguesias, passado um mês faz uma revolução, meio ano depois está a mandar tudo para o gulag o que mexe contra o sabor da sua corrente. Eu não subscrevo a teoria da escalada. Isto não significa, porém, que eu tenha alguma reserva em colocar em cima da mesa de discussão a seguinte questão: como foi possível que a revolução do proletariado se tornasse ditadura sobre o proletariado? Colocar esta questão não significa dizer que qualquer revolução termina em ditadura. Ou sequer que eu entenda que se deve deixar de tentar ser revolucionário para não se correr o risco de acabar em ditador. Colocar esta questão significa dizer sim às revoluções e não às ditaduras. O meu problema com o leninismo enquanto estratégia que advoga a existência de um partido vanguardista não é simplesmente saber se o leninismo possibilita que se chegue a um Estado ditatorial. O meu problema é, fundamentalmente, que tal concepção afirma a necessidade de existir quem dirige e quem seja dirigido. Neste sentido preocupa-me que a concepção vanguardista de partido seja tão propícia à ditadura como conforme à democracia representativa. Tanto me preocupa que Lenine seja compatível com Estaline como com Wilson. Os extremos podem, de facto, tocar-se e no século XX tocaram-se mais do que uma vez. Isto poderia ser subscrito tanto pelo Nolte como pelo José Manuel Fernandes. Mas os extremos tocaram-se frequentemente pelo centro e não pelas costas. É esse centro, que é o coração da Razão de Estado (ou de Partido), que interessa derrotarmos.

sábado, 18 de junho de 2011

KRSCHRRRSHKRR. É, no fundo, do que se trata.

Do folhetim "À farinha não se faz festinhas, que é uma porcaria. Ao povo também não." (Continua daqui




Ficha 2

Retomemos o fio à meada. Falava de coisas sérias e difíceis. Vejamos como nos aproximarmos.

Tenho queda para circunlocuções. São como as pastilhas elásticas coladas debaixo das mesas dos cafés: têm uma utilidade perversa. E dão tonturas. Um bocado como quando temos que atar os atacadores mas não há maneira do nó ficar direito e entretanto distraímo-nos, ou temos um nódoa na parte de baixo das calças e pomo-nos a esfregar para ver se sai e... Ou como quando nos pomos a pensar numa coisa e damos uma volta a mais na rosca reflexiva e faz aquele barulho parecido com os cabos de alta tensão quando chove. Ou quando vemos uma rapariga gira – ou um rapaz giro, conforme - e ficamos assim muito quietinhos e muito calados a fazer força subtilmente naqueles músculos da cara que sugerem um mundo interior faustoso, uma paisagem doce e agreste onde a melancolia e o humor, a inteligência e a ternura, a superioridade natural e a modéstia zelosamente adquirida se fundem num caldo de romantismo, inocência viril e espanto. E depois ouve-se assim: pffffsssst. 

Mas falava de ciência. Enfim, do povo, de padarias, mas sobretudo de ciência.

Vejam!, dizem as pessoas. Ou: vê lá que... e por aí fora. É disso, no fundo, que se trata. As pessoas não sabem bem do que falam quando dizem estas coisas. É para isso que há a ciência. Quando alguém não sabe bem do que fala, é aí que entra a ciência.

Isso e quando certas pessoas chegam à conclusão que não bastam os efeitos, é preciso as causas. As causas. Toda a espantosa e ruminante e espantosa papa em que mergulham as pernas muito fininhas das causas. Toda a tristeza das causas. Mas já estou a perder outra vez o fio à meada.

Traduzindo isto por miúdos: quando não basta – e não basta, de facto – olhar para a superfície dos detergentes da louça. É preciso ir mais fundo. Por isso falei do cerne.

Mas adiante.

O sem senso tem sempre, como o velcro,
uns ganchos pequeninos a que nos podemos agarrar.

KRSCHRRRSHKRR: isto podia ser o som do velcro, o som da nossa atenção a tentar agarrar-se aos pêlos do .... E dos cabos de alta tensão quando chove.

Mas não é disto que queria falar.

Ainda não, pelo menos. Ainda não.

É sempre bom começar por nos aproximarmos, ainda que com cautela. Vá! dizem as pessoas. E coisas como: meu amor, meu amor. E: em casa de ferreiro, nao sei quê. E: arranca-me lá isto que dói como o caraças! E aí percebe-se que a ciência faz muita falta. A questão do cerne, outra vez. A questão é: como perceber isto tudo.

E é disso, no fundo, que se trata.

No que toca ao povo, a aproximação é quase sempre a parte mais difícil.

A gente do tem-de-ser, tenha-paciência


Ora que me soergo dizem que vou servir a outros amos. Há quinhentos anos que me trazem ao engano lacaios estrangeirados, gente do tem-de-ser, tenha-paciência. Agora dizem – cimenta a tua liberdade no bem-querer dos visitantes, vamos ser ricos das migalhas dos ricos. Partirão como ratas obesas quando na barca só ficarem os filhos aleijados dos meus filhos. Partiriam como as larvas dos ossos quando este meu punho se não erguesse a saudá-los mas a pedir uso, a enxada negada, a máquina guardada pelos cães.”


Escrito em Maio de 75, pela Maria Velho da Costa. Mas é para colar nas avenidas, escancarar nos postes e afixar à porta do Parlamento.