quinta-feira, 9 de junho de 2011

Conspurcadores de todo o mundo, uni-vos


“Dirt is matter out of place”
Mary Douglas


Tem-se falado muito de badalhoquices. Eu próprio abri a minha colaboração aqui em tom escatológico, e pouco depois meti-me a falar do discurso metaforicamente higiénico sobre a respeitabilidade, a casa bem governada e o raio que o parta. Também não por acaso, a revista da Unipop vai chamar-se Imprópria. Mas o mote para uma discussão mais séria sobre o assunto aqui no Unipoppers foi dado ontem pelo Ricardo. Os termos usados não vêm do nada, e remontam a discussões que têm circulado por aí: aqui há não muito tempo, a propósito dos efeitos secundários menos salubres da acampada no Rossio, o Zé Neves abordava o tópico, comentando uma imagem e algumas recações à mesma que enojam, seguramente, mas não pelas razões que os seus autores teriam em mente (dispenso-me de listar os outros e vários justíssimos ataques). E continuam na ordem do dia (ver o post logo abaixo). Na primeira discussão, o Zé referia a Mary Douglas, cuja definição clássica de sujidade aqui serve de epígrafe. Mesmo sem mais explicações, é um bom sítio para começar, porque abre logo para um conjunto de discussões sobre as classificações e as topografias, reais ou imaginadas, que atravessam o nosso espaço comum, e aquilo que ele poderia ser.

Em termos mais literais, e mesmo esquecendo os comentários sobre “piolhosos” e coisas assim, a sujidade é um daqueles tópicos que vem sempre à baila quando se fala de revoluções ou revoltas ou insurreições por vir: “isso é tudo muito bonito, mas quem é que limpa as ruas, trata dos esgotos?” etc etc. A questão vem normalmente bem polvilhada de má-fé, mas não é parva (ou não é sempre parva, desde que a discussão seja séria): serve pelo menos de ponto de partida para um conjunto de problemas reais. E lembra-nos que convém não romantizar nem as revoluções nem a porcaria. A maior parte de nós aprecia o autoclismo e a água canalizada e, mesmo fora da esfera da higiene, andamos cobertos com camadas e camadas de hábitos (os ditos “hábitos burgueses”) que nos acolchoam o dia e que não se interrompem sem desconforto - mesmo que estejamos disposto a dispensá-los em certas circunstâncias.

De qualquer modo, há toda uma economia política do lixo e da limpeza (para não dizer da merda), que toca em questões centrais e interligadas como a Classe, as políticas de urbanização, a divisão de trabalho e de género, para dar apenas exemplos óbvios. Para lembrar rapidamente o carácter eminentemente político da questão (se é que é preciso lembrá-lo) basta pensarmos nas transformações em Nova Iorque sob a batuta de Rudolph Giuliani, cuja gestão assentava na “limpeza” da cidade ou “remoção do lixo urbano” a todos os níveis, desde o lixo propriamente dito, passando pela perseguição agressiva de vagabundos, loucos, bag ladies e squeegee men (os tipos que, ironicamente, limpavam os pára-brisas nos semáforos), até ao ataque os cinemas onde passavam filmes “porcos”, que foram empurrados para fora do centro. Enfim, os exemplos são inúmeros: os discursos críticos sobre a imigração, em particular, acabam frequentemente por rondar o campo semântico da sujidade, atrás do qual vêm outros (infecção e contágio). Há livros e livros sobre o tema: Anatomias do Nojo, Teorias do Lixo, Ensaios sobre a Abjecção, até Histórias da Merda. O meu conhecimento da matéria é íntimo, mas apenas de uma perspectiva prática, caseira e amadora (não sendo o gajo mais aprumado, confesso que a minha abordagem quotidiana à questão, fora de acampamentos, tende para o conservador; por exemplo, o piaçaba é uma coisa que me faz espécie precisamente por causa da tal “matéria fora do seu sítio”). Enfim, as ramificações políticas do tema, tanto em termos literais como figurativos, davam para encher de delícias escatológicas uma centena de blogues, durante décadas de postagens frenéticas.



Podemos ir desfiando alguns destes pontos ao longo do tempo, se os camaradas de cá tiverem estômago e paciência para isso. Por agora, quero chegar a um outro exemplo prático, e ir metendo as mãos nas tais cascas de laranja, papéis e caixinhas de que falava o Ricardo via Susaninha, para introduzir um ângulo um pouco diferente. Quero também levar um conjunto de ideias sobre o assunto (mais ou menos vagas e quase nada minhas) a dar umas voltinhas teóricas. Isto vai certamente implicar algum name-dropping, o que para além de não ser bonito pode distrair do argumento (já de si despenteado), mas parece-me inevitável para evitar passar ideias alheias por minhas. Ora cá vamos então, com desculpas antecipadas pela caso me fuja o pé para um tom professoral ou sebenteiro.

O exemplo é o que é descrito aqui, sobre uma pessoa que foi levada a tribunal acusada de roubo, por estar na posse de um presunto retirado dos contentores do lixo de um Supermercado. Como a notícia explica: Just because someone throws something away, does not mean they don't own it. Não me vou alongar nos comentários, adiantando apenas que, para além do lado anedótico-trágico, isto toca (e não tão obliquamente assim) na questão da “reprodução da força de trabalho”, e no aumento do número daqueles que o Capital nem sequer se preocupa em reproduzir. Não ouvem à nossa volta o concerto desconcertado de estalidos que assinalam o romper dos fios que unem Trabalho e Capital? Não ouvem ao longe (ou mesmo aí em casa, ou em casa do vizinho do lado) os serrotes que, na procura de maiores margens de lucro no contexto da crise, vão e vêm freneticamente sobre as cordas do chamado“contrato social”? Ainda muita gente trabalha, claro, e muita gente trabalhará: mas com a precarização e a redução de salários, muitos desses não estão assim tão longe de meter os dedos no nariz para lançar mãos a um belo naco de presunto deixado nas traseiras de um Supermercado. As contas para pagar prendem-nos à relação salarial, a que se agarram com unhas e dentes, ao mesmo tempo que os empregadores seguram numa mão uma tesoura e na outra o Código de Trabalho, que legitima o seu uso. Deixo aqui o registo de uma glosa ao incidente da perna de presunto no lixo, pelo Evan Calder Williams, no Socialism and/or Barbarism, um blog que recomendo sem reservas. A questão da reprodução do trabalho(da carne e da carne para canhão) é tratada aqui (vale a pena ler tudo). Mas nos primeiros comentários, o ECW centra-se mais na própria ideia de Propriedade, na forma como resiste ao abandono, decomposição e desuso:



It is owned straight through the process of decomposition, until the ham goes green and begins to liquify, until it pools in a fetid sludge at the bottom of the bin, seeping a bit out into the street. That is a content that still belongs, beyond any transformation of form, barring one: only exchange, an exchange between two parties, can affect this belonging. For it cannot go unowned, even as it goes unvalued, as it goes wet and reeking.
(…)

After all, you don't miss your water until your well runs dry.  But you still own it, and all the more so when others lay hands and mouths on what must, out of spite, out of the stubborn rage of ownership, be left to evaporate, such that one can begin to stake claims in the clouds, in the air.  In the rain that cuts through that air and splatters what grows and dies below with a staining memory of mine.  It does not come out, not even in the rain.

Esta era a inflecção que eu queria dar à história por agora, e que já estava presente no que o Ricardo escreveu: a relação entre o discurso sobre o lixo e a Propriedade, entre a Propriedade e as linhas que demarcam o“terreno sagrado da soberania”. E vou concluir, deixando muitas questões por abordar e ainda mais por resolver, com uma primeira ficha de leitura:



Num ensaio intitulado “Elogio da Profanação”, Agamben começa (como é habitual) com um percurso genealógico pela Teoria Jurídica romana, para nos dizer que o Sagrado, aquilo que estava destinado aos deuses, era aí definido como aquilo que era “removido do uso livre e comum dos homens”. Isso permite-lhe definir a Religião como, precisamente, o que remove coisas, lugares, pessoas, etc do uso comum e as transfere para uma esfera à parte. Por oposição, profanar significa romper com essa linha divisória, trazer as coisas de volta ao uso, “abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação”. Esta negligência implica uma certa distracção, mas a distracção que caracteriza (num exemplo que lhe é caro) a brincadeira de crianças: distrairmo-nos dos usos que é suposto dar às coisas é criarmos novas formas de atenção. Todo o processo de secularização que foi acantonando a religião, manteve contudo esta estrutura de base, em que às coisas e às pessoas é-lhes atribuído um lugar próprio, uma esfera específica. Tudo bem embrulhadinho com celofano, para não haver matéria fora do seu sítio. E chegamos à parte sumarenta do argumento, embora evidente a partir do que já disse: o Capitalismo é a generalização, para todos os domínios, da estrutura de separação que caracteriza a religião. Aqui os dois pólos opostos tocam-se: é ao mesmo tempo uma consagração e uma profanação absolutas (visto que tudo recai na esfera da troca, tudo é convertível em dinheiro, nada é separado). A maneira de sair deste círculo, sugere o Agamben, é regressar à noção de uso: o uso “é sempre uma relação com algo que não pode ser apropriado; refere-se a coisas na medida em que estas não se possam tornar objectos de posse.” Para concluir, esta dimensão (a que ele chama de “puros meios”) é sempre frágil, ou precária. É um processo de continuado esforço de desactivação da formas de separação., de reinvenção constante, tendo como pano de fundo a teimosia das divisões antigas e a emergência de divisões novas (não há clean breaks). A isso, em toda a sua confusão, fragilidade, inconstância, esforço e desconforto, poder-se-ia chamar sociedade sem classe(s). Não é mais fácil do que aquilo que temos: quando muito, é mais difícil. E é uma badalhoquice pegada. Tudo ao molho e sem fé em deus. Nem em mestres.

(To be continued)

1 comentário:

  1. http://www.thesun.co.uk/sol/homepage/features/3626754/Working-class-doesnt-chav.html

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