segunda-feira, 13 de junho de 2011

A crise da representação

Escrevi, já há dois anos, um curto texto para servir de suporte a uma intervenção num debate realizado aqui e co-organizado pela Unipop. Estava perdido nas catacumbas do meu PC(Reconstruído), até que debates e eventos recentes me fizeram relembrá-lo (por exemplo, aqui, aqui ou aqui). 
Haveria ainda isto, mas a confusão evidente entre polícia e política não pede comentários. Fernanda Câncio pode por isso ficar em paz, a discutir o seu conceito de democracia com o Comandante Metropolitano da PSP (estou certo de que vão os dois divertir-se imenso).
Deixo um lamiré e quem estiver interessado pode continuar por ali abaixo: 
A actual crise da representação política – traduzida nos números crescentes de abstenção e no descontentamento relativamente à condução dos negócios públicos e ao funcionamento das instituições – é também uma crise das formas institucionais de resistência e conflito que contribuíram para moldar a sociedade em que vivemos, lá onde o espaço para a contratualização do conflito se vê reduzido pela crise da acumulação capitalista.

Muitos autores lêem nesse fenómeno uma crise das próprias condições de participação e de acção política. Esta apresentação teve o modesto propósito de questionar o vínculo entre os dois fenómenos. No esgotamento histórico da política baseada no dispositivo transcendental da soberania e na sua legitimação através da metafísica da representação, penso existir mais do que um elemento a saudar. A hipótese, plausível e realista, de que outras formas de política estejam contidas nesse esgotamento confronta-nos com o desafio de as reconhecer já em acto, de forma fragmentária, em vários sítios do globo e noutras tantas situações históricas ao longo das últimas décadas. A hipótese de uma configuração radical da democracia – de uma democracia que não se consome mas antes se exerce –, baseada numa subjectivação sem sujeição, na apropriação consciente do tempo e das condições de vida pelos indivíduos, abre horizontes que ultrapassam um simples aprofundamento da participação ou rejuvenescimento das instituições. Uma outra política pressupõe uma outra forma de vida. Superar a crise da representação exige que superemos a própria representação, que deixemos de assistir ao jogo e comecemos a jogar.


I
É conhecido o raciocínio de Hobbes que presidiu à teorização das modernas formas de soberania. No seu estado natural, os indivíduos estão contrapostos uns aos outros, vivem numa guerra de todos contra todos e em lado nenhum conhecem a paz e a segurança. Para garantir a sua sobrevivência, estabelecem então um pacto e decidem atribuir a um indivíduo o poder absoluto, de maneira a que este os proteja uns dos outros através do exercício da sua autoridade. Como anotaram Negri e Hardt em “Império”, tratava-se de uma transferência “operada por meio de um contrato que transmite todo o poder autónomo da multidão a um poder soberano, dirigente e colocado num plano superior.” Os mesmos autores chamaram a atenção para o facto de a soberania assumir aí a forma de um dispositivo político transcendental, legitimado pelo esquema contratual da representação, através do qual “as vontades isoladas dos diferentes indivíduos convergem na vontade do soberano transcendente e cabe a estes últimos representá-las.”
Continuando o seu raciocínio, Negri e Hardt procuraram em seguida demonstrar a efectividade dos conceitos de «nação» e de «povo» no reforço deste dispositivo político transcendental. Na sua formulação, o «povo» é uma síntese constituída adaptada à soberania e as suas implicações são consideráveis: “o conceito moderno da soberania transfere o seu epicentro da mediação dos conflitos e da crise para a experiência unitária de uma nação-sujeito e da sua comunidade imaginária.” Toma então forma uma máquina política de governo da sociedade que, a longo prazo, é convocada a produzir a própria sociedade, ao mesmo tempo que o conjunto dos súbditos se converte num colectivo de cidadãos.
II
Em «A democracia - história de uma ideologia», o professor italiano de filologia clássica, Luciano Canfora, faz a narrativa do doloroso parto da democracia representativa, numa obra que se debruça sobre a antiguidade clássica e dela salta directamente para o palco da revolução francesa.
Relembrando-nos que o sufrágio universal e a representação parlamentar foram, durante a primeira metade do século XIX, uma reivindicação da esquerda radical da época, Canfora procurou nesse esforço filológico e genealógico demarcar o conceito de «democracia» do lugar que ela veio a ocupar no quadro do pensamento liberal.
Para o que nos interessa, registemos apenas que durante esse período épico da modernidade – grosso modo o que vai da tomada da bastilha até à revolução de 1848 – aquilo a que se chamava o «partido democrático», a vasta amálgama do que restava do jacobinismo com o que começava a ser o movimento comunista/socialista, era considerada um perigo pelas pessoas «respeitáveis» e uma permanente ameaça aos fundamentos da ordem tradicional – a propriedade, a família e o estado. De um lado e de outro das barricadas parisienses de 1830, de 1832 ou de 1848, pensava-se – como acontecia aliás na Grã-Bretanha, no mesmo período, relativamente ao movimento cartista – que o sufrágio universal, ao fazer valer o peso numérico das camadas mais pobres da população, e desde logo o aguerrido proletariado que a revolução industrial concentrara nos grandes centros urbanos, constituiria uma ameaça permanente para as classes abastadas, a quem fora atribuído o governo das respectivas nações. Relembrando-nos de que a Constituição jacobinaConstituinte da II República, já o proletariado parisiense se revoltava contra o hemiciclo a quem cabia representar a nação francesa, Canfora permite-nos reflectir acerca do problema da representação no contexto mais vasto que é o da política. Fá-lo através do recurso a uma citação de Vítor Hugo, um observador que participou directamente nos acontecimentos e neles tomou partido enquanto deputado ligado à ala mais conservadora da constituinte. Escreveu Hugo na sequência dos acontecimentos: “As exasperações da multidão que sofre e sangra, as suas violências contra princípios de que depende a sua vida, as suas rebeliões contra o direito, são golpes de estado populares e devem ser reprimidos. [...] O Junho de 1848, apressemo-nos a dizer, foi um facto à parte, e quase impossível de classificar na filosofia da história. Todas as palavras que pronunciámos devem ser postas de lado quando se trata daquela extraordinária sublevação na qual se ouviu a santa ansiedade da mão-de-obra a reclamar os seus direitos. Foi necessário combatê-la, e era um dever, já que atacava a república. Mas, no fundo, o que foi o Junho de 1848? Uma revolta do povo contra si próprio.”
III
A este propósito, Marx escreveu também, na sua obra clássica «O dezoito de brumário de Luís Bonaparte», um apontamento acerca da génese da constituição da II  República: “O estado de sítio em Paris foi a parteira da Constituinte nas suas dores de parto republicanas. Se mais tarde a Constituição foi mandada para o outro mundo pelas baionetas, não se deve esquecer que também tinha sido guardada no ventre materno e trazida ao mundo pelas baionetas, por baionetas voltadas contra o povo.”
Note-se que, mais do que por esta constatação, na qual Marx se veria seguramente acompanhado por mais do que um autor, o livro que cito destaca-se por ter introduzido na análise da política a centralidade das classes sociais, por ter assinalado uma relação permanente entre as classes sociais e as posições dos agrupamentos políticos, como um pano de fundo tantos dos grandes afrontamentos históricos como dos pequenos debates parlamentares. A sua afirmação original, de que a revolução e a proclamação da república com base no sufrágio universal iniciavam um novo ciclo histórico, remetia desde logo para o carácter da política como um palco no qual “todas as classes foram de repente arremessadas para o círculo do poder político, obrigadas a abandonar os camarotes, a plateia e a galeria e a vir representar, em pessoa, no palco revolucionário.” O carácter teatral e performativo que caracteriza a representação via-se particularmente sublinhado através desta formulação.
Afirmou Marx, a propósito da relação entre os neo-jacobinos da Montagne e a pequena-burguesia (como ele se lhe referira anteriormente, “la boutique et l’épicier”), numa passagem que procurava estabelecer os termos da representação: “Não se deve imaginar que os representantes democráticos são todos lojistas ou pessoas que se entusiasmam com eles. Podem estar a um mundo de distância deles, pela sua cultura e pela sua situação individual. O que os faz representantes do pequeno burguês é que a sua cabeça não ultrapassa os limites que aquele não ultrapassa na sua vida; que, portanto, são teoricamente impulsionados para as mesmas tarefas e soluções para as quais o interesse material e a situação social impulsionaram, praticamente, aquele. Tal é, em geral, a relação existente entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe que representam.”
Mais à frente no mesmo texto, procurando explicar o desenrolar de acontecimentos históricos sem precedentes e fornecer uma explicação que habilitasse o leitor a identificar a lógica por trás deles, Marx considerou a ascensão do poder executivo sobre o poder legislativo – ou seja, de Luís Bonaparte sobre a generalidade dos políticos republicanos ou monárquicos liberais que asseguravam a representação tradicional das classes abastadas – como um resultado da posição dos camponeses, sublinhando novamente a vinculação dos fenómenos políticos ao terreno social.
No seu entender, os camponeses franceses não formavam uma classe social no sentido em que a concebiam os comunistas – ou seja, a de um sujeito das grandes transformações históricas - mas um conjunto de células familiares confinadas à sua pequena propriedade e vivendo num regime de auto-suficiência. Isolados uns dos outros apesar da sua condição semelhante, adquirindo os seus meios de subsistência mais através de trocas com a natureza do que do intercâmbio com a sociedade, os camponeses constituíam “A grande massa da nação francesa, formada pela simples adição de grandezas homólogas, da mesma maneira que batatas em um saco constituem um saco de batatas.” Um pouco à frente, o sentido político do seu raciocínio torna-se ainda mais explícito: “Não podem representar-se, têm que ser representados. O seu representante tem, ao mesmo tempo, que aparecer como seu senhor, como autoridade sobre eles, como um poder governamental ilimitado que os protege das demais classes e que do alto lhes manda o sol ou a chuva. A influência política dos pequenos camponeses, portanto, encontra sua expressão final no facto de que o Poder Executivo submete ao seu domínio a sociedade.”
Temos assim dois elementos fundamentais da representação política neste escrito histórico de Marx, de resto frequentemente glosado por Luciano Canfora. Por um lado os representantes são-no porque partilham com a classe que representam uma mesma concepção do mundo – tal é o caso da pequena-burguesia e dos seus representantes jacobinos. Por outro, a situação material de uma determinada classe possui implicações decisivas na determinação do estilo de representação que lhe é adequado – tal é o caso dos camponeses e da sua relação com o fenómeno bonapartista, que se pretendia, precisamente, estar para lá ou acima dos conflitos entre classes.
 Nestes escritos históricos, permanece um tanto ou quanto indeterminado o tipo de representação adequado para a classe que possuiria a tarefa histórica de superar o capitalismo, embora Marx avance De Flotte - um amigo de Blanqui deportado após a insurreição de Junho e amnistiado por Bonaparte, eleito para a Assembleia Nacional em 1850 - como um representante dos insurrectos de Junho e, por arrastamento, do proletariado revolucionário. Consideraria mesmo a votação de 10 de Junho daquele ano, em que o comité eleitoral socialista venceu as eleições em Paris, uma revolução – “Por detrás dos boletins de voto estão as pedras da calçada.”
Mais tarde, num texto de 1871 dedicado à «Guerra Civil em França» o mesmo Marx considerou a Comuna de Paris um exemplo do que poderia ser um instrumento político para a emancipação dos trabalhadores – uma forma de representação em que os eleitos são revogáveis a qualquer momento, recebem um salário equivalente ao de um operário qualificado e em que os negócios públicos são efectuados da forma mais aberta e transparente, sem segredos de Estado ou negócios de gabinete, destinada, naturalmente, “a servir como uma alavanca para extirpar os fundamentos económicos sobre os quais assenta a existência de classes e, consequentemente, a dominação de classe.” Numa formulação célebre que condensa o problema da representação, escreveu: “Em vez de decidir uma vez cada três ou seis anos que membro da classe governante havia de representar mal o povo no parlamento, o sufrágio universal havia de servir o povo, constituído em comunas, assim como o sufrágio individual serve qualquer outro patrão em busca de operários e administradores para o seu negócio.”
IV
Aqui chegados talvez não seja mau debruçarmo-nos sobre um texto canónico do liberalismo, ao qual a ideia de representação deve um contributo significativo. Falo de "Sobre a Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos", texto em que Benjamin Constant procura traçar os contornos da monarquia liberal constitucional resultante do Congresso de Viena.
Segundo Constant, os povos antigos desconheciam em larga medida a fórmula da representação, tal como ela fora concebida pelos modernos - eles “não podiam sentir a sua necessidade nem apreciar as suas vantagens. A sua organização social conduzia-os a desejar uma liberdade totalmente diferente da que é assegurada pelo nosso sistema.” A maior parte dos direitos de cidadania eram exercidos directamente, e não delegados, o que explicava de algum modo que fossem tão parcimoniosamente estendidos ao conjunto da população de um determinado Estado. Aos modernos pelo contrário, constituídos em corpo político, interessaria sobretudo a liberdade para desfrutar dos prazeres da vida privada sem intromissões externas, confiando a um conjunto de indivíduos capazes a gestão da coisa pública. Nesse sentido, a demarcação da liberdade dos modernos relativamente à dos Antigos estaria, precisamente, no lugar atribuído à participação política activa dos cidadãos. Tratava-se sobretudo da liberdade de enriquecer e acumular, sem que o ressentimento dos pobres ou a ganância dos governantes pudesse subtrair aos indivíduos o que haviam acumulado. Para esse efeito, a participação do “povo” ou das “massas” na política era, não apenas desnecessários como até, provavelmente, pernicioso, como se observara nos “excessos” praticados pela plebe sans-culotte durante o período do «Terror». Eis as virtudes do sistema representativo. Tratar-se de “uma procuração dada a um certo número de homens pela massa do povo, que deseja ver os seus interesses defendidos, e que simultaneamente não dispõe do tempo para os defender permanentemente por si só.” A medida de um bom regime seria, para Constant, a existência de um quadro legal e constitucional estável, que respeitasse a propriedade e o comércio, fosse a garantia da segurança e da paz após os anos turbulentos inaugurados em 1789. A verdadeira garantia da liberdade era a estabilidade das instituições e o domínio da Lei
Através destas reflexões, procurava Constant contribuir para que a transição entre a soberania dinástica e a soberania popular fosse efectuada o menos dolorosamente possível. Já vimos que não foi propriamente esse o caso e que demorou algum tempo até que o sufrágio universal e a democracia representativa se convertessem em sólidos fundamentos da ordem capitalista. A esse propósito, é lícito afirmar que, obrigada a abandonar os camarotes, a plateia e a galeria e a vir representar, em pessoa, no palco da política, a burguesia aprendeu a fazê-lo com alguma mestria.
V
Num livro longo e aparentemente distante do nosso tema, João Bernardo procurou cartografar os “Labirintos do fascismo”. Sentiu para esse efeito, num dado ponto da sua narrativa, a necessidade de compreender melhor as relações existentes entre o capitalismo liberal e os fascismos, de maneira a interpretar as condições que possibilitaram a sua emergência. E identificou uma das zonas de sombra fundamentais na formação e desenvolvimento de uma moderna teoria das elites – ou antes, de um corpo teórico e discursivo formado em torno dessa categoria – através da qual a representação e o sufrágio se viram convertidos num mecanismo de selecção e renovação periódica de elites: grupos de indivíduos que se destacavam das massas e as conduziam, governavam, dirigiam, ao mesmo tempo que interpretavam os seus anseios, interesses e motivações. Bernardo abordou sobretudo os trabalhos de Gaetano Mosca e Vilfredo Paretto, nos quais a democracia era encarada, mais do que na forma de participação política do conjunto da população, como uma forma eficaz de selecção das elites. O elemento relevante destes raciocínios residia fundamentalmente na deslocação que propunham ou pressupunham. As massas eram aqui um elemento passivo e as elites o efectivo sujeito da política. Deixava de haver uma vinculação entre representantes e representados e passa a predominar aí uma separação, tanto mais efectiva quanto encontra correspondência crescente nos processos de divisão social do trabalho e na autoridade omnipresente nos regimes de reclusão que caracterizaram as sociedades disciplinares: a escola, o exército, a fábrica, a prisão ou o hospital.
VI
É essa separação que explica, em larga medida, aquilo a que se convencionou chamar de «crise da representação». Num livro dedicado à expansão dessa separação, Guy Debord considerou que “É a especialização do poder, a mais velha especialização social, que está na raiz do espectáculo. O espectáculo é, assim, uma actividade especializada que fala pelo conjunto das outras.” 
Em todo o lado somos chamados a participar em decisões que nos dizem respeito elegendo representantes ou fazendo-nos eleger para representar outros. Enquanto dispositivo político, a representação organiza tanto as formas do Estado como aquelas outras que são chamadas a servir-lhe de contrapeso, estruturando os vários poderes que se exercem e interagem, dando forma ao “mistério do ministério” identificado por Bourdieu, essa transubstanciação pela qual um grupo passa a existir através das palavras e actos do seu "representante". A máquina política de governo da sociedade não está apenas no aparelho de Estado, mas estende-se ao conjunto da vida social através dessa multiplicação de poderes especializados e separados, cuja actividade escapa efectivamente ao controlo dos representados e assume as tarefas de mediação entre o interesse particular e o interesse geral.
Por outro lado, a representação delineia com alguma precisão o tipo de política que pode tomar forma no seu interior, ao identificar o Estado como o lugar privilegiado da política. Trata-se de reivindicar direitos, negociá-los, protestar pela sua não concretização, contestar a sua diminuição, fiscalizar a sua aplicação. A condição de possibilidade de cada estratégia torna-se a sua compatibilidade com esse dispositivo político transcendental que inclui a democracia representativa, a legalidade e a institucionalização dos conflitos. O presente vê-se investido das características daquele tempo vazio e homogéneo que corresponderia à linearidade do progresso. Deixando-se representar, é da sua própria história que os indivíduos abdicam, vendo-se limitados a viver o seu tempo conforme ele é fixado pelo conjunto das instituições especializadas no exercício do poder.
Um olhar crítico facilmente reconhecerá nessa despossessão a condição de tudo o resto. Reduzido à categoria de força produtiva, mercadoria que produz outras mercadorias, o trabalhador assalariado é em tudo o resto confinado à passividade de um espectador. O seu descontentamento pode ser facilmente canalizado através de múltiplos canais de protesto, todos eles organizados segundo o mesmo princípio da separação. E as identidades colectivas suscitadas por esse descontentamento e por esses protestos facilmente se deixam enquadrar pelos jogos simbólicos, cujo domínio os representantes devem possuir para desempenhar as suas funções. A actual crise da representação política – traduzida nos números crescentes de abstenção e no descontentamento relativamente à condução dos negócios públicos e ao funcionamento das instituições – é também uma crise das formas institucionais de resistência e conflito que contribuíram para moldar a sociedade em que vivemos, lá onde o espaço para a contratualização do conflito se vê reduzido pela crise da acumulação capitalista.
Muitos autores lêem nesse fenómeno uma crise das próprias condições de participação e de acção política. Esta apresentação teve o modesto propósito de questionar o vínculo entre os dois fenómenos. No esgotamento histórico da política baseada no dispositivo transcendental da soberania e na sua legitimação através da metafísica da representação, penso existir mais do que um elemento a saudar. A hipótese, plausível e realista, de que outras formas de política estejam contidas nesse esgotamento confronta-nos com o desafio de as reconhecer já em acto, de forma fragmentária, em vários sítios do globo e noutras tantas situações históricas ao longo das últimas décadas. A hipótese de uma configuração radical da democracia – de uma democracia que não se consome mas antes se exerce –, baseada numa subjectivação sem sujeição, na apropriação consciente do tempo e das condições de vida pelos indivíduos, abre horizontes que ultrapassam um simples aprofundamento da participação ou rejuvenescimento das instituições. Uma outra política pressupõe uma outra forma de vida. Superar a crise da representação exige que superemos a própria representação, que deixemos de assistir ao jogo e comecemos a jogar.

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