quinta-feira, 14 de julho de 2011

Um semântico incurável


ABANDONAI TODA A ESPERANÇA
VÓS QUE AQUI ENTRAIS


Now you're getting into semantics! Em inglês vernacular, a palavra semantics é quase sem excepção usada depreciativamente, para designar aquele ponto numa discussão em que já não se discute nada, ou nada de concreto. (Ah como é reconfortante, apesar de dura, a concretude!). É o reino das palavras, dos fiozinhos enredados que as entretecem, dos buracos que elas têm no fundo, que deixam passar o vento e não permitem transportar a água do conteúdo em paz. A semântica (ou o semântico), neste sentido, é um lugar simultaneamente escorregadio e pantanoso: por um lado, patina-se desgovernadamente porque não há um sítio firme onde nos agarrarmos e, por outro, acabamos por ficar lá atolados (bogged down, dizem eles). Em português, a ideia de retórica ocupa um lugar algo semelhante, embora seja uma coisa menos lamacenta. Seja como for, o certo é que não leva a lado nenhum. A semântica baralha as ordens, atrapalha as leis, desconcerta a gestão necessária. E empata lutas. Quando em conversa as pessoas perguntam “tás a ver?” (“know what I mean?”), é suposto a outra pessoa dizer (ou simplesmente acenar) “estou a ver sim senhor, atão não se está mesmo a ver?”.



Quando se fala de política deparamo-nos com muitos praticantes do salto à vara. Saltam sobre novelos semânticos para chegar ao que interessa. O pior é que a vara é semântica, a barra é semântica e, sobretudo, o colchão onde aterram felizes da vida e saltam de braços para o céu é tão semântico que até dói. A vida não é só palavras, e há muitos gestos em política que podem e devem operar para lá ou aquém dos enredos que nos enredam. Que não esperam pelo selo dos significados. É neste sentido que a política é estética: a sua primeira função é desarrumar, improvisar sem esperar pelo perfeito encaixe dos conceitos. Mas mesmo aqueles com grande poder de impulsão emancipatório, que com um valente salto suspendem por momentos a força da gravidade dos significados, perceberão que os enxames de palavrinhas lhes mordem logo os calcanhares. Isto para não falar do facto de há muito terem colónias em feroz procriação nos cantos mais escuros da mioleira. Mas saltam. E depois viram-se para os outros e dizem: “Estão a ver?”




Pois não estamos a ver não senhor. Porque este “estão a ver” é tantas vezes muito parecido com o polícia que manda seguir repetindo “não há nada para ver aqui”. Siga, siga, não faça caso. Não há nada mais opaco – e, já agora, mais escorregadio e pantanoso – do que a tentativa de se exilar da semântica. Chama-se a isso: semântica por outros meios. E assim se vão passando os aviõezinhos ideológicos com mensagens tidas por evidentes, com palavrinhas doces como liberdade, iniciativa, criatividade, estabilidade. Ou povo, organização, missão, Nação.

O nosso governo diz-nos assim, por exemplo:

Trata-se de mudar com realismo e coragem, isto é, sem falácias ideológicas que escondem sempre falsos desígnios. Pelo contrário, o desígnio do Governo é um compromisso com a cidadania, com a solidariedade, com a iniciativa e com a criatividade.”

Estão a ver?”


É que não estamos mesmo nada a ver.


Saquemos das facas para ver como é que isso cheira por dentro.

 


É preciso inventar outras facas. E mesas maiores, para que se juntem todos em redor.

O melhor não é saltar por cima das palavras, mas com elas e em cima delas. Amolgá-las, dobrá-las, refazê-las, e desatá-las semanticamente pelas ruas semânticas fora. Reinventar a semântica, outra. E vejam então as palavras à solta entre muitos e como se espalham pela cidade fora. Como se corre por ruas sem amos com palavras sem dono. Como se atiram com soltura. Depois é tempo de as apanhar e de feroz e paciente e colectivamente as amanhar, estender os seus arames de uma parede a outra, de uma boca a outra. Até ao fim dos tempos e quem sabe depois do fim dos tempos.  

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