terça-feira, 27 de março de 2012

Um dia para recordar


Se alguma coisa se tornou evidente com tudo isto é que a incredulidade de quem assiste ao comportamento da polícia em situações deste género corresponde à obstinada recusa em aceitar que esse comportamento é absolutamente rotineiro e habitual, variando apenas consoante a classe social, a identidade étnica ou a localização geográfica das pessoas sobre as quais ele se abate. Aqueles bastões não batem com menos força na Cova da Moura ou na Arrentela ou em Chelas do que no Chiado. Nem a sua ameaça é mais democrática contra os piquetes de greve do que contra os profissionais da informação. Mas foi necessário que tudo acontecesse ali, à vista das estátuas de Pessoa e de Camões, para que circulassem como uma demonstração incontornável do que é a violência do Estado num contexto de austeridade.
Aspirando a uma polícia democrática, vinculada ao primado do Direito e absolutamente transparente, multiplicam-se os apelos de esclarecimento do que aconteceu por parte de diversos sectores e até um inquérito foi aberto pela Inspecção Geral da Administração Interna. Mas esta polícia, que já se tornou célebre por disparar sobre carros em fuga em “operações stop”, por executar crianças de 14 anos com um tiro na cabeça, por espancar cidadãos nas esquadras e por percorrer os bairros pobres como um exército ocupante, sempre pôde contar com a maior das complacências por parte da comunicação social e pelas instituições do Estado que têm a seu cargo fiscalizá-la. A sua violência é proporcional ao seu sentido de impunidade e enquanto se ler nos jornais, como se fosse a verdade mais evidente do mundo, que “a polícia foi obrigada a intervir” nesta ou naquela situação, sem que seja necessário verificar o que a levou a intervir e de que forma interveio, episódios destes continuarão a repetir-se, com ou sem jornalistas à mistura.
Da mesma maneira, todos os esforços para diabolizar exclusivamente os agentes fotografados no momento das agressões, punindo-os disciplinarmente para fazer deles bodes expiatórios de uma situação indesejável, apenas perpetuarão o equívoco que trata como uma excepção aquilo que é efectivamente uma regra. Quando batem indiscriminadamente sobre todos os manifestantes, os agentes da polícia fazem-no integrados num aparelho de violência altamente hierarquizado e segundo as ordens que recebem. Não se trata de abusos que seria desejável corrigir, mas de métodos e funções que se aplicam numa base quotidiana.

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