terça-feira, 10 de abril de 2012

Adenda a uma Carta Aberta

Adenda a uma carta aberta
Três notas adicionais sobre os motins de Londres, em parte desenvolvidas a partir de comentários perspicazes de amigos e desconhecidos.


Ele mostrava-se igualmente indiferente no que toca às pilhagens: “O que é que eu sinto em relação a isso? Sinceramente, nada. Faz parte de um motim. Não sinto nada.”1


Um.

Algo que devia ter sido mais sublinhado e que quase passou despercebido é que, apesar de toda mistura de choque e espanto face ao caos espontâneo, quer alegado quer real, muito mais impressionante é tudo o que não pode ser arrumado nessa categoria. Tudo o que, pelo contrário, só pode ser entendido como tendo emergido de formas de organização concretas e zelosas. Não, não se assemelha a um partido, a uma coligação ou a uma associação. Não, não é um fruto do Facebook ou do BB Messenger, embora estes tenham certamente ajudado, tal como não estamos aqui perante um qualquer outro novo “sujeito em rede”, excepto no que toca à velocidade de transmissão. E não, Cameron e companhia, por mais conveniente que seja importar para Londres práticas ao bom velho estilo da Polícia de Los Angeles, isto não se assemelha a um gang, embora contasse com a presença de gangs.

Não é “uma” organização, mas é organização, na medida em que implicou apelos concretos (i.e, aqueles que foram enviados via BB, etc.) para que uma multidão de pessoas se juntasse num determinado local, se “manifestasse” contra a ordem legal e de propriedade vigentes entendidas como um todo, e se aguentasse firme face às forças policiais que tentassem impedi-los. Nisto, isso sim, podemos ouvir um eco longínquo daquilo que as manifestações deviam ser. Como tal, as acusações de desordem irracional, decadência moral ou de que as pessoas se teriam entusiasmado e “perdido a cabeça” falham o alvo e são cegas à forma como, embora não houvesse uma ordem, se geravam ordens, em que pessoas se agregam com um propósito específico e depois dispersam-se. Um modo de ataque (note-se que muita coisa foi partida e incendiada sem que tal fosse apenas um meio para chegar à pilhagem) que implica empenho e, sublinhe-se, a disciplina de levar algo até ao seu termo, pondo de lado o medo de represálias.

Mesmo aqueles que querem denunciar o que se passou como algo bárbaro, cobarde, equivocado (“se eles só tivessem levado cobertores ou partido sucursais de bancos, poderia percebê-los e apoiá-los!”) e despropositado são ainda assim forçados a perceber – e desconfio que o percebem perfeitamente – que não é aleatório o facto de milhares de pessoas se juntarem num local predeterminado e agirem de forma concertada. É uma forma de organização que toma como factor de pertença comum não os votos, nem cartões de sócio, nem “princípios” partilhados, intocáveis ou sujeitos a revisão. Não assenta em serem um conjunto de sujeitos em comum. Ao invés, forma temporariamente uma base móvel e em curso que assenta naqueles a quem é consistentemente negado qualquer estatuto enquanto “sujeitos políticos válidos”. Aqueles que não têm qualquer interesse em serem arrebanhados na ordem que desde sempre os odiou. Não é necessário tornarmo-nos membros dessa “tal” organização, pois ela não existe. É uma linha, uma força gravitacional, quase um axioma, a que uma pessoa está ou não está ligada. E que, em certos momentos, se torna deveras difícil de ignorar.

A questão em causa, a verdadeira questão, é simplesmente o que fazer com base neste ponto de partida, no facto de estarmos ou não ligados a ele. Aqueles que já são reconhecidos como sujeitos políticos ou traem a sua posição (a traição contra a posição e classe que se ocupa é, afinal de contas, o gesto fundamental de qualquer verdadeira viragem contra a ordem social existente, nela reside a definição do proletariado como algo que se abole a si próprio) ou a apertam contra o peito e não a largam por nada deste mundo. Aqueles que já estão excluídos, das duas uma: ou esperam e lutam por serem reconhecidos ou esperam e fazem o que houver a fazer – independentemente dessa exclusão, contra essa exclusão e apesar dessa exclusão. E, neste último caso, este fazer é um fazer em conjunto, com plena consciência que, quaisquer que sejam os ganhos individuais (um produto pilhado, vingança pessoal contra a polícia), estes só são alcançáveis através de uma acção concertada. E com plena consciência, para além disso, de que as consequências terão um impacto que vai muito para lá de qualquer indivíduo concreto. (E nisto inclui-se, por exemplo, a forma como as sentenças a que estarão sujeitos têm por base o todo da situação, e não serão ajustadas à escala dos seus crimes particulares, como o de levar umas garrafas de água no valor de um punhado de libras).

De forma sucinta, devíamos acrescentar: não é menos insatisfatório explicar aquilo que se passou, e desse modo arrumá-lo bem arrumado numa gaveta, recorrendo simplesmente a um relato das determinações económico-sociais, em moldes marxistas ou outros. Reconhecer o impasse histórico concreto que de facto apenas pode emergir nestes momentos não equivale, ou não devia decididamente equivaler, a reduzir as decisões concretas que foram tomadas a uma mera adesão ao que está predeterminado. É verdade que o pensamento histórico agrega escolhas e tendências. Fá-lo para apontar os constrangimentos estruturais que enquadram as escolhas que são feitas e as razões pelas quais, mesmo nos casos em que alguém sente que está a fazer uma “escolha livre”, o próprio espectro do que é considerado “livre” está restringido, e de uma forma muito específica. Mas a melhor questão, a que tem sérias consequências em termos da orientação que daqui podemos tomar, não é porque é que eles não escolheram tal ou tal caminho, porque é que eles não se dirigiram ao Palácio de Buckingham ou a Downing Street, porque é que não “fizeram uma revolução”, mas antes porque é que nós escolhemos o que escolhemos, que tipo de vida é que tal escolha forja, mesmo que o faça confusamente e por mais que essa escolha não pareça “construtiva”.

Para voltar à questão da negação, um projecto de negação não começa com o pseudo-negativo que é posto em cena pelas questões contra-factuais. Começa com a tomada de consciência que essas estranhas torções e ventos a que se dá o nome de vontade não são meramente um verniz subjectivo de puro desespero e de mãos que não têm mão em si. São um projecto, ainda que improvisado. E, como qualquer projecto, fazem projecções a partir de decisões ínfimas, concretas, muitas vezes obscuras. Os ecos dessas decisões ínfimas ressoam tremendamente nas décadas subsequentes, muito mais do que o coçar de cabeça enquanto imaginamos como as coisas poderiam ter seguido outro rumo.

É claro que as noções de que dispomos, tanto clássicas como contemporâneas, de vontade, agência e decisão se verão aflitas para conseguir pensar um momento como este. Isto é porventura um indício de que tais termos devem ser descartados. Mas o tempo da sua utilidade, nem que seja para nos ajudar a registar o que terá verdadeiramente mudado, ainda não se parece ter esgotado. Pelo contrário, a forma como não conseguem ter mão firme nos dias que correm deve-se a quão pouco estes motins se prendem com ser-se visto, contado, representado, notado, quão pouco servem para chamar educadamente a atenção a quem de direito para a nossa discordância, quão pouco se assemelham a todas essas acções que tendencialmente têm contribuído para restringir e conter aquilo que se entende por vontade popular, resguardando-a aquém da explosão desses mesmos limites2. Dito forma mais simples, a questão não é ser visto e contado. Esse é um efeito secundário, é o momento em que algo transborda e se torna inequivocamente visível.

(A este propósito, reparem como políticos e comentadores de todas as cores e feitios, que previamente tinham denunciado o que se passara, foram mesmo assim obrigados a falar de como isto lhes “abriu os olhos” ou, para pegar nas palavras de David Cameron, num estilo inesperadamente próximo do festim de sangue e vísceras dos romances splatterpunk, de como “os problemas sociais que há décadas estavam a infectar explodiram-nos agora na cara”, tornando a revelação análoga a um esguicho infeecioso de pus. O que não é de todo surpreendente. Os motins trazem ao de cima o Clive Barker que há em cada um de nós.)

Quando algo se torna visível desta maneira, quando emerge súbita e integralmente à luz do dia, tem então apenas uma breve janela em que pode ainda espalhar-se, período durante o qual é registado, identificado, catalogado e por fim subjugado.

O que não devemos deixar escapar neste rebuliço a que assistimos, em que na confusão dos tumultos se tenta colar etiquetas com as caras, os nomes e os corpos carcerários de indivíduos concretos, é que, independentemente do cálculo da propriedade destruída ou pilhada, dos polícias feridos ou das janelas partidas, do número de prisões e de acusações, duas coisas permanecem. Ou seja, resistem a essas equações, permanecem inquantificáveis. Primeiro, uma raiva genuína contra a lei e a ordem que ela defende. Segundo, uma agregação de gente, em grande medida orientada por e para essa mesma raiva, mas que vai para lá dela. Não é preciso ser-se comunista para perceber que o que tanto horrorizou uma boa parte da Grã-Bretanha foi uma imagem fugidia, mas irrefutável, daquilo que a acção colectiva e propositada dos muito pobres pode ser. E quão longe ela está de ser reconfortante, humanista, democrática ou “progressista”.


Dois.

Porventura a explicação mais sucinta que ouvi acerca da “razão para as pessoas se amotinarem”, uma que toca naquela difícil dupla condição (por um lado, o antagonismo enquanto trabalho, esforço consciente e empenhado, tanto na sequência de um clarão momentâneo e identificável como de muitos e muitos anos a ser-se tratado abaixo de cão; mas, por outro, a sensação de algo que surge do nada e por sua própria vontade) é esta:

As pessoas estão a amotinar-se porque o motim finalmente chegou”3
Isto pode parecer uma tautologia, mas não é de todo vazia de significado. Significa que muita gente não só sabia que isto haveria de acontecer mas se tinha de facto preparado para essa eventualidade. Significa que um motim é algo não redutível a indivíduos que se amotinam (i.e., é um substantivo que não descreve apenas algo que as pessoas fazem). Significa também que não chega “todo de uma só vez”. Por muito depressa que ateie, não é uma aceleração instantânea do zero ao roubo de cavalos da polícia. Algo começa, as pessoas fazem a escolha de se atiraram a e para o meio desse algo e, a determinada altura, torna-se claro que o motim começou. Aqueles que têm estado à sua espera – como de uma abertura, uma brecha – agem ou não, copiam ou não. É uma oportunidade que pode ser agarrada, e foi.


Três.

A actual "etapa" disto, e o debate corrente, gravita em torno das consequências judiciais e das acusações aparentemente desproporcionadas: seis meses pelo roubo de umas garrafas de água, dois meses por uns calções, quatro anos pela criação de acontecimentos ou comentários deixados no Facebook, mil pessoas acusadas até agora, e a proposta de emissão de ordens de despejo para os amotinados. (A estranha estrutura deste último ponto da lista, em toda a sua óbvia vileza, corresponde aproximadamente a isto: vocês que saíram à rua em bando, vamos privá-los de habitação, pelo que serão obrigados a voltar a essas mesmas ruas, já que gostam tanto delas! E o que é vão fazer em relação a isso, um motim? Espera lá...)
Ainda que, e sem que tenhamos que fingir o encolher de ombros de quem já viu tudo, será que isto ainda surpreende alguém? É verdade, é uma “conta mal feita” (dados os custos do encarceramento e o excesso de população nas prisões), e sim, “a matemática deles não bate certo”, e é vingativa. Porque é que isto haveria de nos surpreender? Houve alguma coisa, uma que fosse, no comportamento anterior dos que estão no poder, que apontasse um outro rumo? Será que até aqui eles têm tomado as decisões económicas certas, ou feito escolhas em função do bem-estar dos pobres? Fazer um grande teatro em torno da nossa suposta surpresa poderá ter algum efeito retórico, mas armarmo-nos em ingénuos para amplificar a presumível novidade disto é, a bem dizer, cuspir para o ar. Há muito pouca novidade neste caso. Há apenas um tudo nada mais, como diria Cameron, que vos espirrou para a cara e entrou nos olhos.

Ainda assim, há algo que merece aqui ser assinalado, algo que dá a impressão de ser novo, não tanto porque até aqui fosse invisível, mas porque a sua severidade tem aquele cheiro distinto de uma sequência que agora se despoleta e que é provável que perdure por muitos anos. A sensação de terror não é fortuita, porque o terror – o sentimento, não o género – designa precisamente aquele golpe no pensamento que estala quando se rompe o fio entre causa e efeito.

(Para invocar um exemplo ficcional, o terror de Freddy Krueger não reside no que ele faz ou deixa de fazer com a língua ou com os seus dedos de lâmina. Reside antes na narrativa esfarrapada que sustenta o seu desejo de vingança, narrativa essa que se vai tornando mais esfarrapada ainda pela sua repetição em série, filme após filme. Assim, qualquer nexo de causalidade plausível, ou qualquer cálculo acerca de como ou porquê certos efeitos ocorrerem como ocorrem, perde-se na tempestade enlameada e sangrenta de puros efeitos sem origem e sem fim à vista. Porque o terror ali presente não é o facto de ele voltar, e voltar outra vez e outra vez. Também a Primavera o faz. Está antes na forma como esse regresso insiste numa narrativa explicativa – para aqueles que precisam de uma breve recapitulação, Freddy procura “vingar-se” contra as crianças da cidade cujos pais, o queimaram e mataram como forma de justiça popular depois de ele ter sido ilibado do assassínio de uma criança devido a um erro técnico no mandado de busca - ao mesmo tempo que destrói essa mesma narrativa. É verdade, eles “contornaram” a lei, mas é também verdade que tu, Freddy, estavas a matar os seus filhos. É de supor que qualquer pesagem moral ou simbólica, no mínimo, equilibrasse a balança. Mas, em vez disso, o efeito-Freddy solta-se da sua causa inicial, e é por essa mesma razão que não é possível pará-lo ou argumentar com ele.)

No caso em questão, o peso ridículo, vingativo, das sentenças faz duas coisas. Em primeiro lugar, assinala os motins como uma coisa para lá das meras decisões individuais (como um acontecimento, como algo que chega), de modo que a pessoa é acusada não à escala do que fez ou roubou, mas à escala de algo que não é nem pode ser um sujeito legal. A pessoa é acusada de ter agido num momento em que a lei não conseguia cumprir a sua função. Como forma de retaliação, a lei transforma-se ela própria numa coisa gigantesca, implacável, injustificável e injustificada.

Em segundo lugar, declara não só aquelas horas de pilhagem mas toda esta era dos motins, como já muitos apelidaram estes anos que vivemos, como algo em que a medida da causalidade se desfez e continuará a desfazer, levando consigo o cálculo da retribuição, a ideia de pagar na mesma moeda. Indica um período em que efeitos geram efeitos, e em que a total incapacidade de fazer face às “causas de fundo” (leia-se: a longa recessão económica a par do crescimento da população) implica que o feudo sangrento entre o estado e a população poderá não ter, e não terá de facto, uma morte natural. Estamos apenas no começo de uma prolongada Saturnália de julgamentos, e os juízes, bem conscientes disto, atacam apenas a coberto da noite.

Muitos de nós estão convencidos, sem retirar disso qualquer alegria, que isto é um índice de uma daquelas estruturas cíclicas em torno das quais a próxima década, senão mais, irá girar. Isto parece particularmente verdade em países que estão habituados a um nível de vida elevado (e que, por isso mesmo, são apanhados ainda mais de surpresa quando este nível começa descer acentuadamente), onde uma boa porção da população continuará a gozar desse conforto, apesar de um agravamento geral da situação, e onde haverá um número crescente de pessoas que nunca pertenceram a essa porção, a quem nunca foi dada a possibilidade de gozar desse conforto. Ou seja, em partes dos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, e na Europa do Sul.

Em suma:

1. Motins sem nenhuma direcção discernível (motins causados em parte pelo policiamento incessante da população, com picos episódicos, como assassinatos e sentenças judiciais, e em parte pelo desemprego generalizado no seio dessas populações);
 
2. Tentativas de os situar retroactivamente numa sequência causal (que discernirá neles modulações das duas condições acima enunciadas, com os conservadores a dizer “o policiamento era insuficiente, e eles simplesmente não querem trabalhar”, os liberais a dizer “haverá policiamento, mas não deve ser feito desta forma, e precisamos de encontrar formas de gerar oportunidades de emprego” e as pessoas com dois dedos de testa a dizer “haverá apenas policiamento deste porque, estruturalmente, o emprego destas populações é impossível”);

3. Policiamento cada vez mais severo (basta olhar para os potenciais candidatos a Chefe da Polícia Metropolitana para se tornar clara a vontade de a aproximar da polícia “ao estilo americano”, o que sugere que não deve faltar muito para que andem de arma em punho);

4. Sentenças judiciais vingativas que a) demonstram a tal disjunção entre causa e efeito e b) são sintomáticas da incapacidade de traçar qualquer nexo coerente entre policiamento e emprego, e que reforçarão essa mesma incapacidade;

5.Voltar ao início e começar de novo, mas desta vez de forma mais desatinada, mais feroz, mais decomposta, mais cansada, mais esfomeada e mais bruta.

1N. do T.: Citando um dos participantes nos motins em Liverpool, segundo uma reportagem do jornal The Guardian:: http://www.guardian.co.uk/uk/2011/aug/10/riot-liverpool-birkenhead-police
2 N. do T.: No original “ all those actions which have tended to restrict and contain what is understood popular will as an expression or burst limit of them”.

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