sábado, 7 de abril de 2012

"Eles não trabalham. São criminosos"


Carta aberta aos que condenam as pilhagens IV


4. Eles não trabalham, são criminosos

Sim. Não trabalhar sob o capital é criminoso. É-o estruturalmente: uma falha, uma transgressão, aquilo que pede castigo – fome, prisão, coerção. Agora que deixámos para trás a era das guerras generalizadas, da habitação própria e da produção interclassista de crianças, o emprego a tempo inteiro é a garantia do estatuto de adulto, da cidadania, de se ser um sujeito de pleno direito. A ausência de trabalho – ou melhor, de trabalho reconhecido enquanto tal – equivale a uma criminalização generalizada das populações, mesmo antes de qualquer transgressão legal ocorrer de facto.
É-o também localmente, isto porque, na medida em que o trabalho significa trabalho sancionado, não trabalhar implica que uma pessoa trabalhe em moldes que são tecnicamente criminosos: roubar, vender bens roubados, vender drogas, vender o corpo, burlar, pedir, ocupar, pilhar.
E num tempo como o nosso, em que não há empregos suficientes à disposição, ou, cruzes credo, em que as pessoas não querem trabalhar, não querem mergulhar as suas vidas em horas de suor e tédio das quais tanto elas como as suas famílias ou a sua vizinhança apenas colherão uma ínfima porção da recompensa, num tempo como este, continuar a dizer às pessoas que esta não é a maneira certa de fazer as coisas é, literalmente e sem tirar nem pôr, dizer-lhes: vocês não poderão trabalhar e vocês não poderão não trabalhar. Têm que se desenrascar e devem fazê-lo sem grande escarcéu.

Contudo, conviria que vocês, bem como nós, tirássemos a limpo o que significa, ao certo, o termo trabalho.
Sucintamente, é a troca do nosso tempo e esforço – uma porção de uma vida – por uma certa quantidade de bens, sendo o dinheiro o mais comum e o mais infame de todos. A especificidade de tal trabalho sob o capital é a de que o valor dos bens que o trabalhador recebe não é equivalente ao valor gerado pelo seu trabalho: isso é o que os Marxistas denominam de mais-valia. Isso é aquilo a que os capitalistas chamam fisgar a presa.
Para o trabalhador, a taxa de retorno do trabalho não é constante. Os salários não são idênticos, e um retrato adequado da economia mundial torna evidente que, à excepção de algumas correlações genéricas para trabalho muito especializado (cirurgiões, assassinos, pianistas de jazz), e pondo de parte a nossa fantasia de que os salários e a valia são comensuráveis, a quantidade auferida tem pouca relação com a qualidade ou quantidade de trabalho realizado. Algum trabalho é pouco qualificado e paga muito mal. Algum trabalho é altamente qualificado e paga muito bem. Algum trabalho é altamente qualificado e paga muito mal.
Estou certo que estaremos todos de acordo neste ponto, mesmo que esse facto não nos agrade muito. É, afinal de contas, verdade.
É também verdade, então, que esta pilhagem é uma forma de trabalho, ao mesmo tempo que arruína a própria categoria de trabalho. É, tal como o crédito, uma inflexão da crise do pleno emprego. É uma actividade de elevado risco, precária, informal e com dividendos potencialmente muito elevados. Aqueles que pilham estão a trocar uma porção do seu tempo – uns quantos minutos ou horas, embora potencialmente se possam traduzir em anos de prisão ou na sua morte, pelo que a remuneração horária é de cálculo muito incerto – as suas capacidades intelectuais e físicas e a sua energia, pelo acesso a um conjunto de bens que eles, como tantos outros, desejam.
Estão a trabalhar, e isto num tempo em que o trabalho é um bem escasso. Estão a trabalhar em conjunto, o que, como todos bem sabemos, é aquilo que verdadeiramente vos assusta. É verdade que nós lhe dissemos para se juntarem e trabalharem em comunidade de modo a melhorar as suas vidas, mas não era bem isto que nós queríamos dizer...
E, para dar adequadamente conta do que se passa, não podemos reduzi-lo ao acto de agarrar consumíveis ou bens para uso caseiro (vale a pena lembrar que ter um plasma gigantesco não torna mais fácil pagar a conta do cabo). Isto porque imediatamente a seguir à pilhagem de uma loja de aparelhos electrónicos, havia pessoas a tentar despachar portáteis por vinte libras, o que representa qualquer coisa como 2.5% do preço de venda original, se não menos. O que significa não só que estamos aqui perante o tão celebrado espírito empresarial que se espera que os pobres, tanto os que trabalham como os que não trabalham, aliem ao seu desenrascanço para escapar à pobreza.
Isto significa ainda que o vosso argumento de que é de alguma forma moralmente repreensível, ou pelo menos tacticamente equivocado, as pessoas levarem estes produtos em vez das “necessidades básicas” é, em boa verdade, uma idiotice. Querem-nos convencer, portanto, que é suposto os pobres não só restringirem o âmbito dos seus desejos, mas igualmente não serem capazes de entender os fundamentos do valor de troca? Que eles deviam ter enchido carrinhos de compras com farinha e feijões, em vez de computadores que poderiam, em teoria, ser vendidos de modo a obter uma maior quantidade de farinha e feijões? Ou ainda ficar com eles dar-lhe uso, uma vez que o acesso à internet, a capacidade de escrever a amigos ou contar histórias, ouvir música, olhar para fotografias daqueles que amam ou com quem fantasiam amores: ao que nos é dado saber, a pobreza não abole o desejo de tentar gozar a existência que se tem e de partilhá-la com outros, por mais desesperados que estejam os tempos.
Portanto, sim, estavam de facto a ser oportunistas. Estão a pegar na justificação de uma “causa de preocupação legítima” (o homicídio de um jovem) e estão a usá-la para produzir uma situação em que uma pessoa pode aceder a bens materiais e riqueza que de outra forma estaria impedida de tocar.
Culpar alguém por isto é ser cúmplice de uma profunda e disparatada mistificação do mundo. Como se as engrenagens básicas do capital não estivessem fundamentalmente orientadas no sentido do aproveitamento de oportunidades. (Tal como, por exemplo, aproveitar a oportunidade concedida pelas populações excedentes de pobres e pela natureza global do trabalho para manter os salários baixos). Como se apenas os pobres aproveitassem oportunidades. Como se devêssemos pôr obstáculos a que uma pessoa faça uma aposta arriscada para melhorar a sua vida.
Como se a luta, qualquer que seja a forma “odiosa” e violenta que ela tome, contra uma ordem social odiosa e violenta, devesse manter-se dentro dos limites do meramente político, ou seja, daquilo que é fácil ignorar. Como se, afinal, o que estivesse em causa nisto tudo não fosse material, não fosse a maneira como uma pessoa vive ou não vive uma vida, não fosse o próprio desastre a que se dá o nome de social.

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