quinta-feira, 31 de maio de 2012

A pedra de roseta





Durante milhares de anos a escrita dos antigos egípcios permaneceu indecifrável para os seus estudiosos. «Hieróglifo» era um sinónimo de gatafunho ilegível. Até que um soldado de Napoleão encontrou, nas imediações da cidade de Roseta (Rashid), no delta do Nilo, uma estela de pedra trilingue com o mesmo texto escrito em grego antigo (que era bem conhecido), demótico (uma variante escrita mais recente do egípcio) e com hieroglifos. Passou a ser possível a partir daí decifrar os textos deixados por uma das mais antigas civilizações do mundo.
Helena Roseta acaba de nos presentear, por um desses acasos em que a história é fértil, com algo semelhante. Durante os últimos anos pareceu ser-lhe possível conjugar tudo e um par de botas:  discursos de apelo à cidadania e à participação cidadã com a mais pragmática e cínica participação nos mecanismos de governação; apologias da rua e do espaço público com programas de reabilitação urbana que expulsam imigantes dos espaços que estes utilizam há décadas; retóricas da esquerda florida e colorida com indisponibilidade para debater o que ponha em causa alguns dos mais óbvios mecanismos de poder que estruturam a vida social. E eis que agora tudo se decifra e se torna claro, clarinho, claríssimo, clarão. Os hieróglifos tornaram-se legíveis. Roseta gosta de fazer poesia com floreados de esquerda e política autárquica com bastões de polícia. A sua política de habitação tem como base o desalojo e a existência de edifícios limpos e devolutos.
É dar uma vista de olhos a este despacho serôdio e fica-se com uma ideia do que vai naquela cabecinha. Um prédio vazio desde 2005. Que foi ocupado em 2010 e, uma vez desalojado, permaneceu vazio com a fechadura lá deixada pelos ocupantes. Que tinha as janelas abertas, o interior cheio de lixo, entulho e merda de pombo, a deteriorar-se. E eis que afinal há mil e um planos para ele, estava tudo pronto a arrancar e só estes malvados ocupantes o vieram impedir. Helena Roseta tem o supremo cinismo de anexar ao seu despacho fotografias tiradas pelos próprios ocupantes para mostrar o estado de deterioração em que se encontrava o edifício... à data da ocupação. Mas afinal, com tantos e tão bons projectos, os serviços da CML não dispunham das suas próprias imagens do interior, planos detalhados, um inventário, nada? Devemos realmente concluir que só a ocupação do imóvel gerou interesse por esse imóvel? Que pretende agora a CML  «garantir o direito à habitação a famílias carenciadas» - 2150 a aguardar desde Setembro de 2011(!)- após deixar o edifício ao abandono durante anos e anos? Que estava já agendada uma vistoria para Maio de 2012 e que só a ocupação o impediu? A desonestidade é tanta que Roseta se dá ao luxo de invocar o problema com a canalização que motivou infiltrações no espaço da ILGA quando esse problema foi resolvido por iniciativa dos ocupantes no espaço de dois dias.
Finalmente, vale a pena dar uma vista de olhos ao despacho de resposta do juiz à providência cautelar interposta pelos ocupantes. Traduzindo do juridiquês: Helena Roseta, muito preocupada com os fogos devolutos da CML ocupados por lisboetas, alterou o Regulamento de desocupações de fogos municipais, reduzindo de 90 para 10 dias úteis o prazo de abandono dos mesmos após notificação camarária. Simplesmente, a competência para o fazer não pertence ao executivo camarário mas à assembleia municipal, que redigiu e aprovou o regulamento anteriormente em vigor. Sendo a alínea do regulamento invocada na notificação camarária inaplicável, porque sem qualquer validade jurídica, não poderia aquela notificação ser outra coisa que não nula.
Ora o juiz que olhou para o caso entendeu que não era necessário deferir o decretamento provisório da suspensão dos actos administrativos por ser aquela figura jurídica aplicável apenas no caso de existir uma situação urgente de ameaça irreversível aos direitos do requerente, o que não lhe pareceu ser o caso, uma vez que o desalojo pode ser revertido e a casa devolvida aos ocupantes. Resolveu então admitir a providência cautelar, suspendendo assim o acto administrativo em causa (ou seja, a notificação de despejo assinada por Roseta) e intimando as duas partes a apresentar provas das suas alegações. Entende Roseta no seu despacho que as suas próprias convicções, argumentos e alegações são prova bastante de que é do interesse público o desalojo de S. Lázaro, mesmo sem respeitar o Regulamento de desocupações de fogos municipais em vigor, que não é aquele que ela pretenderia, mas aquele que efectivamente seguiu as vias legais. E ordena por isso um despejo absolutamente ilegal, que não o é menos por ser aplicado por agentes da Polícia Municipal e pela PSP, fardados, equipados e armados, cheios de vontade de bater, como se pode ver pelos vídeos acima expostos. 
Helena Roseta está disposta a tudo para garantir que as ocupações selvagens de fogos devolutos municipais não passam por cima dos seus desígnios de caridadezinha para com as «famílias carenciadas». Daqui a pouco há eleições e não há nada como umas imagens de distribuição de casas a gente humilde para lhe dar aquele pedigree de «esquerda moderna e democrática com preocupações sociais» que é o alfa e o ómega da sua carreira política. Helena Roseta enganou-se e o seu engano vai-lhe custar caro. A sua carreira política acabou aqui, numa manhã quente de Maio, em que às suas ordens um bando de gente fardada despejou o número 94 da Rua de S. Lázaro, agredindo e detendo quem se opôs a uma medida ilegal. A vida, essa, vai continuar. Se pensam que é assim que nos vencem  pensem novamente. Isto ainda é só o início. 

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