segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Cenas dos próximos capítulos II – Sonhar na Totalidade


 
Voltando a pegar nas discussões necessariamente incompletas que foram surgindo nos debates que a Unipop organizou na Achada. Num ponto já adiantado da última conversa, em torno do dossier «Futuro» do nº 2 da revista Imprópria, o Nuno Ramos de Almeida evocava a frase de Jameson (tantas vezes citada por Zizek) de que é mais fácil imaginar a destruição total do nosso planeta do que o fim do capitalismo, para argumentar em seguida (parafraseio): «venderam-nos» a ideia de um fim das grandes narrativas, e com isso perdemos capacidade de acção transformadora. É preciso voltarmos a sonhar na (com a?) Totalidade. Ou seja, procurarmos formas de combate que apontem para uma verdadeira transformação sistémica, e não se limitem a ir aplicando remendos. Esta ideia suscitou uma reacção virulenta da Golgona Anghel, mas não chegou a ser discutida. Pessoalmente, há muito que estou desconfortavelmente dividido entre, por um lado, uma insistência no carácter sistémico da dominação capitalista e na consequente necessidade de “mapas” que retratem essa Totalidade e que nos permitam desse modo formas de transformação mais articuladas e sustentadas e, por outro, uma enorme desconfiança das chantagens que nos vão sendo feitas em nome desta articulação, que muitas vezes redundam num programatismo redutor, num apelo em última instância conservador à paciência (temos que ter calma, perceber o sistema no seu todo antes de encetar as nossas lutas) e em sistemas organizativos hierarquizados, etc. De qualquer forma, parece-me certo que temos, como o próprio Jameson sugere na sequência da frase que o Nuno Ramos de Almeida citou, um défice de imaginação. Parece-me igualmente certo que o indispensável exercício da nossa imaginação política, tanto na teoria como na prática, dispensa uma escolha esquemática entre o culto do Programa e o culto da Espontaneidade.
Alguém se chega à frente para esta discussão?

E uma citação do Jameson, para dar o mote:


a utopologia reaviva partes da mente que há muito estão dormentes, órgãos da imaginação política, histórica e social quase atrofiados por falta de uso, músculos da praxis que há tanto tempo deixámos de exercitar, gestos revolucionários que perdemos o hábito de ensaiar, mesmo subliminarmente. Este reavivar da futuridade, da postulação de futuros alternativos, não é em si mesmo um programa político, nem mesmo uma prática política: mas é difícil ver como uma acção política duradoura ou efectiva poderia emergir sem ele.”

Fredric Jameson Valences of the Dialectic


5 comentários:

  1. Caro Miguel Cardoso,
    ainda bem que te chegas à frente para discutir o problema. Aqui há meses, no Vias, o Pedro Viana levantava uma questão semelhante a propósito do mesmo tema - e eu respondia-lhe como se segue, num post que aqui transformo em comentário, porque resume bem o modo como continuo a pensar que podemos e devemos superar o dilema que tu nos propões.
    Aqui vai, pois - com um abraço a minha prosa e o link para a sua versão no Vias, que permitirá o acesso ao texto do Pedro Viana e a outros posts citados.
    (continua)

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  2. QUE MOVIMENTO POR QUE DEMOCRACIA?

    Embora concordando com muita coisa dita pelo Pedro Viana na sua reflexão pós-eleitoral, eu não diria que a formação e extensão de um movimento alternativo de democratização do regime de relações de poder que hoje nos governam requer a construção de uma grande narrativa unificadora. Tendo a pensar que a unificação e identificação (para si próprio e para o exterior a que se deverá endereçar) desse tipo de movimento requer, como condição necessária e suficiente, menos uma grande narrativa ou síntese de grandes narrativas, mas uma plataforma mínima de princípios orientadores muito simples ou um projecto não menos simples e claramente formulado de democratização geral. Esta plataforma ou projecto de democratização seria uma espécie de denominador comum dos cidadãos comuns que protagonizariam a acção do movimento.

    Para concretizar um pouco melhor esta ideia, recorro agora à citação modificada de uma crónica que o Rui Tavares acaba de publicar. A modificação que introduzi foi só uma: onde o Rui escreveu "esquerda", eu escrevi "democracia", a fim de acentuar não a defesa ou afirmação destes ou daqueles interesses ou necessidades particulares, mas a exigência de igualdade de poder que é condição de um governo livre. A passagem da crónica, depois de intervencionada, diz o seguinte:

    'Mais do que uma doutrina ou uma ideologia, a democracia [esquerda] é a aliança daqueles que não são ricos nem poderosos. A democracia [esquerda] é uma aliança de pessoas livres e iguais, fraternas entre si na mesma dignidade.

    'Sendo os ricos e poderosos naturalmente poucos, a democracia [esquerda] terá de ser, para ter força, a união dos muitos. E esses muitos são - como é evidente - muito diferentes uns dos outros. Não são, não podem ser, todos da mesma seita. Não têm, e não podem ter, todos os mesmos objetivos de futuro, a mesma visão do mundo, ou o mesmo estilo de vida. Isso é impossível, e a democracia [esquerda] que é democracia [esquerda] luta para que isso seja impossível, e para que ainda assim haja unidade entre os muitos, os que não são ricos nem poderosos, os que se arriscam a ser lixados se não souberem fazer uma aliança'.
    (continua)

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  3. Se não me engano muito, temos aqui os primeiros elementos da plataforma ou projecto de democratização a que me referia atrás, não sendo difícil tirar deles um pequeno número de consequências necessárias que essa plataforma ou projecto deverá explicitar desde o início. Uma maneira clara de o fazer é em termos de acção e participação - ou, se se quiser, nos termos que a democracia requer e implica no regime ou modo de agir e participar.

    Se "a democracia é uma aliança de pessoas livres e iguais", a organização de um movimento que a tenha por fim, terá de a ter também por meio e forma de organização. Ora, se todo o movimento é um poder e comporta relações de poder, o primeiro regime de exercício do poder a democratizar por uma "aliança de pessoas livres e iguais" é o da organização e direcção do próprio movimento. Esta democratização é condição necessária da que o movimento propõe no que se refere ao governo da sociedade.

    As mesmas razões fazem com que as lutas e acção política do movimento visem a extensão e generalização da participação igualitária, responsável e regular - auto-organizada ou autónoma -, de cada cidadão nas decisões comuns, que vinculam a existência colectiva e a gestão das suas condições. O regime democrático resultante de "uma aliança de pessoas livres e iguais" é o de uma forma de governo ou exercício do poder cuja legitimidade implica a igual possibilidade de participação governante de cada um dos cidadãos governados.

    Na medida - hoje enorme - em que a economia é uma instância determinante ou um campo de relações de poder decisivo no governo das nossas vidas de homens e mulheres comuns, não há democratização possível, no sentido que tenho vindo a indicar, do exercício do poder, que não tenha desde o início de começar a transformar essa mesma economia. Esta democratização da economia tem vários níveis, sendo importante insistir nesse aspecto: implica, nomeadamente, a democratização dos rendimentos e do mercado; a democratização das relações de poder no interior das empresas ou organizações; a democratização da decisão dos objectivos gerais e planeamento da actividade económica, etc.

    Trata-se, na realidade, de um ponto de importância capital, uma vez que, embora não saibamos talvez o que seria a democratização da economia, sabemos que sem ela não há democratização efectiva do poder político, pois boa parte deste é hoje exercido na esfera económica, e, mais ainda, a componente "direcção da economia" tende a primar cada vez mais no governo efectivo da sociedade sobre a parte que cabe ao aparelho de Estado propriamente dito. Assim, seria talvez preferível falarmos, não tanto do poder político e do poder económico da oligarquia governante, como de um poder político oligárquico que se exerce ora sob a forma da organização hierárquica da economia, ora sob a forma de controle dos aparelhos do Estado.
    (continua)

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  4. Se o que disse até aqui contém as bases que poderiam funcionar como uma plataforma ou projecto de democratização, vemos agora que essas bases configuram um denominador comum que não precisa de optar por uma das "grandes narrativas" ou tradições rivais que conhecemos, nem de as substituir por uma nova grande narrativa ou concepção do mundo unificada. Pode, em contrapartida, reunir gente que vem de tradições e horizontes diversos e cujas antecipações dos conteúdos substantivos de uma sociedade autónoma permanecem abertas ao debate. Não é que a ideia de democracia para que remete a descrição do Rui Tavares seja neutra ao nível das concepções do mundo ou que os conteúdos substantivos, os investimentos da vontade, os objectivos visados pelos que se identifiquem com o projecto de democratização, não sejam importantes. Efectivamente, quem quer a liberdade de decidir em pé de igualdade com todos os outros do governo das dimensões comuns ou colectivas da sua própria existência, quer essa liberdade em vista de alguma coisa a que poderíamos chamar aristotelicamente as condições de uma vida boa. O que aqui se sustenta é que essa questão essencial e múltipla só pode ser plenamente posta e indefinidamente retomada por todos e cada um daqueles a quem diz respeito através de uma acção de democratização instituinte cujos critérios e formas de organização procurei indicar acima.

    O ponto que me importa marcar não é o do relativismo, mas o da criação. A "vida boa" não pode em deve ser concebida como um estado de coisas final ou, menos ainda, uma organização estatal cientificamente definitiva, mas como um fazer quotidiano, que quotidianamente se interroga e explicita, mantendo-se interminavelmente em aberto à posição de novos fins, imaginados, criados e propostos a partir das encruzilhadas comuns dos nossos trabalhos e ócios dos nossos dias. É esta concepção em acto da "vida boa" no fazer e na deliberação do que fazer que permite que, a partir de pontos de partida diferentes, correspondendo ao legado de diferentes "tradições" e/ou "grandes narrativas", a "aliança" de que fala o Rui Tavares e que é, no fundo, também a preocupação fundamental do post do Pedro Viana.

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  5. … esquecime do link para o Vias. Aqui vai: http://viasfacto.blogspot.pt/2011/06/que-movimento-por-que-democracia.html

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